Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 61

– e conhecíamos várias histórias trágicas – acabavam por decepcionar-se, frustrados nas suas expectativas missionárias, auto-redentoras e até moralistas que podiam perfeitamente ter ido dar às patranhas do coaching e da programação neurolinguística, e só por acaso tinham ido dar ao (e cito) “espaço rural”. Que o campo seja também cruel, mesquinho e invejoso, como nos ensinaram Torga e tantos outros, tornou-se assim quase acessório. Ou instrumental: a espécie produzindo o seu espectáculo diário, para nosso enriquecimento e talvez deleite. Também no campo a distância entre a nobreza da raiva e a abjecção do ódio é, muitas vezes, ínfima. Também no campo ignorância e arrogância se abraçam uma à outra como poderosos ímanes – como uma espécie de yin e yang do Mal. Mas, por outro lado, há menos espaço para esse misto de fanatismo ideológico, ligeireza histérica e autoritarismo da virtude a que, tantas vezes, o debate intelectual se cinge hoje. Visto do campo, o cinismo urbano reduz-se àquilo que na verdade é: uma caricatura de si mesmo. E, no lugar da solidão, está frequentemente a intimidade. Que permanece uma intimidade, mesmo no desespero – se calhar até sobretudo no desespero. Na verdade, nada me interessa, hoje, se não for íntimo. Por isso passei a dividir as terras entre aquelas onde se pode ver as estrelas e aquelas onde não se pode. E, se em algum momento o merceeiro da aldeia se engana na minha conta da semana, eu pago na mesma e passo a colocar mais atenção no que compro – sem confrontações inúteis. Regressar aos Açores privou-nos de muita coisa, a mim e à Catarina. Tirou-nos um cartaz diário de cinema, por exemplo. Impediu-nos de ouvir a TSF em qualquer lado. Desinformou-nos sobre os novos restaurantes e as novas lojas e as novas tendências – reduziu-nos o teatro, os concertos, a presença dos amigos de sempre, a companhia de boa parte da família. Deixou-nos completamente – quase completamente – sem livrarias. Mas deu-nos perspectiva e noção das proporções: o Portugal que se vê do meio do Oceano, o mundo que se vê à distância, tem contornos tão francamente mais nítidos que, a mim, chega a parecer-me aberrante que alguma vez tenha pensado tanta coisa que pensei. Deu-nos a paisagem: há algo na renovação da paisagem, nos seus ciclos incertos e inexoráveis, que permanece acima de tudo o mais. E deu-nos os nossos cães, o velho Melville, a sábia Jasmim, o buliçoso Gaugin: o que aprendemos com eles não chega a caber nestas páginas – sobre a força da natureza, sobre o poder do cuidado, sobre a origem dos afectos, sobre o significado do tempo, sobre a estupidez de dois terços das dicotomias contemporâneas. E, entretanto, fomos readquirindo o mais que nos faltava, que o século XXI tem expedientes técnicos como nenhum outro teve. 61