– e conhecíamos várias histórias trágicas –
acabavam por decepcionar-se, frustrados nas suas
expectativas missionárias, auto-redentoras e até
moralistas que podiam perfeitamente ter ido dar às
patranhas do coaching e da programação
neurolinguística, e só por acaso tinham ido dar ao
(e cito) “espaço rural”.
Que o campo seja também cruel, mesquinho e
invejoso, como nos ensinaram Torga e tantos
outros, tornou-se assim quase acessório. Ou
instrumental: a espécie produzindo o seu
espectáculo diário, para nosso enriquecimento e
talvez deleite. Também no campo a distância entre
a nobreza da raiva e a abjecção do ódio é, muitas
vezes, ínfima. Também no campo ignorância e
arrogância se abraçam uma à outra como
poderosos ímanes – como uma espécie de yin e
yang do Mal. Mas, por outro lado, há menos espaço
para esse misto de fanatismo ideológico, ligeireza
histérica e autoritarismo da virtude a que, tantas
vezes, o debate intelectual se cinge hoje. Visto do
campo, o cinismo urbano reduz-se àquilo que na
verdade é: uma caricatura de si mesmo. E, no lugar
da solidão, está frequentemente a intimidade. Que
permanece uma intimidade, mesmo no desespero –
se calhar até sobretudo no desespero.
Na verdade, nada me interessa, hoje, se não for
íntimo. Por isso passei a dividir as terras entre
aquelas onde se pode ver as estrelas e aquelas
onde não se pode. E, se em algum momento o
merceeiro da aldeia se engana na minha conta
da semana, eu pago na mesma e passo a colocar
mais atenção no que compro – sem confrontações
inúteis.
Regressar aos Açores privou-nos de muita coisa, a
mim e à Catarina. Tirou-nos um cartaz diário de
cinema, por exemplo. Impediu-nos de ouvir a TSF
em qualquer lado. Desinformou-nos sobre os
novos restaurantes e as novas lojas e as novas
tendências – reduziu-nos o teatro, os concertos, a
presença dos amigos de sempre, a companhia de
boa parte da família. Deixou-nos completamente –
quase completamente – sem livrarias.
Mas deu-nos perspectiva e noção das proporções: o
Portugal que se vê do meio do Oceano, o mundo
que se vê à distância, tem contornos tão
francamente mais nítidos que, a mim, chega a
parecer-me aberrante que alguma vez tenha
pensado tanta coisa que pensei. Deu-nos a
paisagem: há algo na renovação da paisagem, nos
seus ciclos incertos e inexoráveis, que permanece
acima de tudo o mais. E deu-nos os nossos cães, o
velho Melville, a sábia Jasmim, o buliçoso Gaugin: o
que aprendemos com eles não chega a caber
nestas páginas – sobre a força da natureza, sobre o
poder do cuidado, sobre a origem dos afectos,
sobre o significado do tempo, sobre a estupidez de
dois terços das dicotomias contemporâneas.
E, entretanto, fomos readquirindo o mais que nos
faltava, que o século XXI tem expedientes técnicos
como nenhum outro teve.
61