Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 6

Milhares de teorias e filosofias (quatro textos de Fernando Pessoa em tradução) Jerónimo Pizarro (Universidade de Los Andes) 6 Talvez fosse difícil apresentar Fernando Pessoa como um filósofo, mas não como um escritor estimulado pela filosofia que, ao longo da sua vida, realizou incontáveis incursões filosóficas. Pessoa não criou um sistema — o próprio sensacionismo pretendia ser um sistema de sistemas — nem se afastou de outras práticas, como a literatura, para filosofar; pelo contrário, dividindo-se em muitas vozes, estabeleceu pontos constantes de contacto entre a literatura e a filosofia. Esta última pode encontrar-se nos textos teóricos e mais programáticos de António Mora, mas também na poesia de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, bem como em muitos textos ortónimos. Pessoa dotou a filosofia de uma plasticidade especial — como Antonio Machado ou Jorge Luis Borges —, por a tornar menos monocórdica e autoreferencial, e por a forjar especialmente para uma personagem, ou seja, para a verdade dessa personagem. A filosofia de Caeiro não é a de Reis, por exemplo, nem a de Pessoa. Não existe necessariamente uma unidade filosófica, mas sim uma multiplicidade. Para contribuir para o estudo das incursões filosóficas de Pessoa, nesta secção introduzo, transcrevo, traduzo e ofereço ilustrações de quatro dos seus escritos. Os textos escolhidos poderiam ser muitos mais, mas estes são suficientes para captar o interesse de Pessoa pela filosofia. Os primeiros textos são de natureza mais autobiográfica; o terceiro tem um carácter mais abstracto; e o último é abertamente ficcional. Não se incluem artigos críticos mais conhecidos, como «O que é metafísica» (que começa com «Na opinião de Fernando Pessoa, expressa no ensaio “Athena”, a filosofia — isto é, a metafísica — não é uma ciência, mas uma arte»), nem poemas famosos como «Tabacaria», cujos versos entrelaçam poesia e metafísica («Estou hoje dividido entre a lealdade que devo | À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, | E a sensação de que tudo é sonho, como algo real por dentro.») O primeiro escrito foi publicado, juntamente com outras «notas autobiográficas e de autognose», em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), datado de «1910?», embora talvez vez seja anterior e mais próximo dos anos em que Pessoa passou pelo Curso Superior de Letras em Lisboa e teve aulas de filosofia (1905-1907). O texto está em inglês, a língua predominante até meados de 1908, e a sua caligrafia corresponde à de outros escritos da chamada «terceira» adolescência de Pessoa, que passou em Lisboa, após o seu regresso da África do Sul, em 1905. Uma das principais ideias do texto, «descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a alma poética do universo», evoca uma «ciência» que Pessoa chamou de «microsofia» e definiu como «a ciência do diminuto»; esta incluiria várias pequenas ciências que interessaram ao jovem escritor, entre as quais a frenologia, a fisionomia, a grafologia e a quirologia (ver Escritos sobre Génio