tantos deles comparáveis a favelas do antigamente
chamado terceiro-mundo, são hoje construídos
novos bairros sociais, de qualidade um pouco mais
digna, com a dupla função de premiar os residentes
eleitoralmente mais bem-comportados e esconder
a miséria do bairro original. Lá dentro, como a toda
a volta, grassam como em nenhum outro local do
país o analfabetismo, o insucesso e o abandono
escolar; a violência doméstica, o abuso sexual e a
gravidez precoce; o alcoolismo, a obesidade
infantil e a diabetes; a mortalidade infantil e o
suicídio jovem, a pobreza persistente e a
dependência do Rendimento Social de Inserção. De
que maneira uma criança nascida num lugar assim,
ademais sem um exemplo de autonomia – muito
menos de brio, seja de que natureza for – até três
gerações antes da sua, poderia alguma vez aspirar
a outra coisa senão à miséria, quanto mais a algum
género de liberdade?
Isto era algo para que a alienação em que eu vivia
em Lisboa – a bolha, como hoje se diz – não me
tinha preparado devidamente. Porque depois dos
números vieram as pessoas. Depois das pessoas
vieram os seus nomes. E depois dos seus nomes
vieram as suas casas, as suas rotinas, o que comiam
ao jantar.
Partíramos de Lisboa, eu e a Catarina, com um
intuito que era também o de um desvio
estratégico. Tínhamos uma vida divertida, mas cara.
Vivíamos nos bairros tradicionais,
em casas dispendiosas e com hábitos dispendiosos
também. Entretanto, as indústrias de que
subsistíamos, os livros e os jornais – a Catarina
como tradutora, eu como cronista, cada vez menos
jornalista e eterno candidato a escritor – haviam
entrado em falência. O futuro adivinhava-se
sombrio, ademais para duas pessoas que sempre
tinham prezado a ideia de independência.
Estávamos tristes, estávamos gordos e estávamos,
provavelmente, deprimidos. Tínhamos deixado de
fazer planos, como se nos escasseasse agora o
desígnio.
Não era coisa pouca, porque a mais nada nos
comprometêramos com a mesma convicção no dia
em que nos casáramos: haveríamos de fazer planos
até ao fim. E, então, contámos a nós próprios a mais
bela história. Lisboa era uma cidade maravilhosa –
Lisboa é uma cidade maravilhosa –, mas talvez
tivesse deixado de ser para nós. Já mudando-nos
para os Açores, onde de qualquer modo vínhamos
passando cada vez mais tempo, poderíamos ter
uma vida mais barata, consequentemente mais
livre, seguramente mais saudável,
indiscutivelmente mais bela e talvez até mais
serena, contanto o demónio não se contivesse
afinal dentro de nós.
E, além disso, habitando a velha casa de família que
adquirira anos antes, eu poderia não só emular os
gestos dos meus antepassados, mas fazer uma
espécie de diagnóstico diferencial da infância,
separando o que de facto acontecera daquilo que
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