Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 59

tantos deles comparáveis a favelas do antigamente chamado terceiro-mundo, são hoje construídos novos bairros sociais, de qualidade um pouco mais digna, com a dupla função de premiar os residentes eleitoralmente mais bem-comportados e esconder a miséria do bairro original. Lá dentro, como a toda a volta, grassam como em nenhum outro local do país o analfabetismo, o insucesso e o abandono escolar; a violência doméstica, o abuso sexual e a gravidez precoce; o alcoolismo, a obesidade infantil e a diabetes; a mortalidade infantil e o suicídio jovem, a pobreza persistente e a dependência do Rendimento Social de Inserção. De que maneira uma criança nascida num lugar assim, ademais sem um exemplo de autonomia – muito menos de brio, seja de que natureza for – até três gerações antes da sua, poderia alguma vez aspirar a outra coisa senão à miséria, quanto mais a algum género de liberdade? Isto era algo para que a alienação em que eu vivia em Lisboa – a bolha, como hoje se diz – não me tinha preparado devidamente. Porque depois dos números vieram as pessoas. Depois das pessoas vieram os seus nomes. E depois dos seus nomes vieram as suas casas, as suas rotinas, o que comiam ao jantar. Partíramos de Lisboa, eu e a Catarina, com um intuito que era também o de um desvio estratégico. Tínhamos uma vida divertida, mas cara. Vivíamos nos bairros tradicionais, em casas dispendiosas e com hábitos dispendiosos também. Entretanto, as indústrias de que subsistíamos, os livros e os jornais – a Catarina como tradutora, eu como cronista, cada vez menos jornalista e eterno candidato a escritor – haviam entrado em falência. O futuro adivinhava-se sombrio, ademais para duas pessoas que sempre tinham prezado a ideia de independência. Estávamos tristes, estávamos gordos e estávamos, provavelmente, deprimidos. Tínhamos deixado de fazer planos, como se nos escasseasse agora o desígnio. Não era coisa pouca, porque a mais nada nos comprometêramos com a mesma convicção no dia em que nos casáramos: haveríamos de fazer planos até ao fim. E, então, contámos a nós próprios a mais bela história. Lisboa era uma cidade maravilhosa – Lisboa é uma cidade maravilhosa –, mas talvez tivesse deixado de ser para nós. Já mudando-nos para os Açores, onde de qualquer modo vínhamos passando cada vez mais tempo, poderíamos ter uma vida mais barata, consequentemente mais livre, seguramente mais saudável, indiscutivelmente mais bela e talvez até mais serena, contanto o demónio não se contivesse afinal dentro de nós. E, além disso, habitando a velha casa de família que adquirira anos antes, eu poderia não só emular os gestos dos meus antepassados, mas fazer uma espécie de diagnóstico diferencial da infância, separando o que de facto acontecera daquilo que 59