Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 58

Segunda oportunidade ©Joel Neto 58 Discurso de aceitação do Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores/CM Castelo Branco 2019, atribuído ao primeiro volume do diário A Vida no Campo. Casa dos Açores em Lisboa, Rua dos Navegantes à Lapa, 10 de Dezembro de 2019 No dia em que voltei a aterrar nos Açores, desta vez com a intenção de ficar, não saberia dizer o preço de um quilo de arroz. Vinte anos antes, enfiara os pertences da juventude num grande saco camuflado que a minha mãe mandara comprar na base aérea americana e partira (mais do que em busca de sonhos) ansioso por sair dali para fora. Entretanto, e durante duas décadas, fizera de tudo: entrevistara chefes de estado, conhecera dezenas de países, ganhara muito dinheiro (e gastara-o sem piedade). Fora todas as personagens: o marido romântico, o chefe prepotente, o candidato a escritor. Cometera todos os erros: conduzira alcoolizado, dormira com mulheres que não eram a minha, envolvera-me em debates sobre cujo assunto não possuía um mínimo de conhecimento. Em suma, crescera em público, como dizia a canção. Vivera. Vivera até em bom estilo, se considerássemos o contexto de onde vinha: pobre, rural, protestante, ilhéu – sucessivas ilhas dentro de outras ilhas. Proporcionara-mo Lisboa, a experiência e a aprendizagem. Nunca poderei agradecer-lhe tudo o que me deu. Mas a verdade é que voltava, ao fim de todo esse tempo, e não sabia o preço de um quilo de arroz. Nem como se assentava um tijolo a prumo. Nem em que mês floriam as camélias. Nem que se podia atear uma fogueira sem uma acendalha. Nem o que os pobres comiam ao jantar. O que os pobres comem ao jantar. Agora que olho para trás, à distância de sete anos que eram para ter sido quatro e desde então deixámos de questionar-nos sobre quantos serão, pode bem ter sido essa a maior de todas as instruções: o que os pobres comem ao jantar. Apesar de tudo o mais que adquiri, creio que nada me mudou tanto, emocional e intelectualmente, como a possibilidade de viver entre os pobres (na verdade, de voltar a viver entre os pobres). Porque os Açores são uma terra pobre. Ilhas deslumbrantes, com um resto singular de autenticidade e um povo tão caloroso como talvez já não existam muitos, lideram paradoxalmente todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – repito: todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – e estão, de muitos pontos de vista, a caminho de lado nenhum. E, quando eu tentei imaginar-me na pele de uma criança nascida sem meios num lugar assim, belo e desprovido de horizontes, fui obrigado a rever tudo aquilo em que acreditava sobre o papel do Estado, sobre a política partidária, sobre a própria ideologia – e, evidentemente, sobre as funções da arte. Dezenas de milhar de pessoas vivem nos bairros sociais dos Açores. À volta desses bairros sociais,