Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 54

54 disciplinar (isto tem sentido, aquilo não tem sentido e, finalmente, daquilo que não se pode falar o melhor é calar, cf. 7.) para se tornar motivo de admiração, não só porque nos torna conscientes dos limites, de vivermos numa prisão, mas sobretudo porque nos torna conscientes de que correr contra os muros da prisão nos permite alcançar mais do que o desespero, uma vez que nos dá acesso a uma dimensão da nossa vida que de outro modo ficaria oculta. O nosso drama A partir deste momento, a dramatização inicial da figura [Bild] sofre uma bela metamorfose, passando do “tableau vivant” para o jogo, uma forma de dramatização vastíssima, que inclui também a do “tableau vivant”. Em alemão, a palavra jogo [Spiel] investe uma energia lúdica inserida numa trama dramática², o drama da nossa existência, declinado em incontáveis variações: desde dar ordens e agir de acordo com elas a formar e examinar hipóteses; desde inventar uma história, dançar numa roda, resolver uma adivinha, resolver um problema de aritmética aplicada a traduzir; desde pedir a praguejar e a rezar (cf. Investigações filosóficas § 23). Neste ponto já atravessámos O caderno azul e O caderno castanho (apontamentos de cursos que Wittgenstein ditou aos seus alunos) e entrámos decididamente adentro das Investigações _______________________ ² Uma peça de teatro designa-se precisamente por Spiel, o actor é o Spieler, a actriz, a Spielerin, a representação diz-se spielen. filosóficas, obra a que ele dedicou a maior parte da sua maturidade e que esteve quase preparada para ser publicada, mas não chegou a sê-lo senão após a sua morte (que se deu em 1951). Uso e significado. Sentido e forma de vida Por conseguinte, a partir do Tractatus, os conceitos de sentido, de verdadeiro e de falso, reaparecem num quadro que, não se opondo simplesmente ao do Tractatus, implicam, por assim dizer, uma torção, uma deformação, uma espécie de desdobramento de uma figura geométrica ainda por determinar. Mantém-se a concepção da filosofia como uma actividade em vez de ser uma doutrina, mantém-se o objectivo de clarificação dos usos da nossa linguagem, agora, porém, já não para os purificar. Agora o que lhe interessa são os usos eles mesmos. É do exercício quotidiano da linguagem, do falar quotidiano, que o filósofo se ocupa. Mas, atenção, a afirmação “Deus é bom” continua insusceptível de demonstração como verdadeira ou falsa, acrescentando-se, porém, que nunca poderá ser avaliada como um erro a não ser que se converta numa teoria. Demonstrações, deduções, inferências, teorias são operações que Wittgenstein deixa cair, empenhado em descrever, e ainda mais em deixar estar como está aquilo que por inerência está sempre em ordem, a saber, a palavra humana. Ele descobre que do uso das palavras nas diferentes frases e contextos depende o significado delas, e também é nele que está albergada a “forma de