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disciplinar (isto tem sentido, aquilo não tem
sentido e, finalmente, daquilo que não se pode
falar o melhor é calar, cf. 7.) para se tornar motivo
de admiração, não só porque nos torna conscientes
dos limites, de vivermos numa prisão, mas
sobretudo porque nos torna conscientes de que
correr contra os muros da prisão nos permite
alcançar mais do que o desespero, uma vez que nos
dá acesso a uma dimensão da nossa vida que de
outro modo ficaria oculta.
O nosso drama
A partir deste momento, a dramatização inicial da
figura [Bild] sofre uma bela metamorfose, passando
do “tableau vivant” para o jogo, uma forma de
dramatização vastíssima, que inclui também a do
“tableau vivant”. Em alemão, a palavra jogo [Spiel]
investe uma energia lúdica inserida numa trama
dramática², o drama da nossa existência, declinado
em incontáveis variações: desde dar ordens e agir
de acordo com elas a formar e examinar hipóteses;
desde inventar uma história, dançar numa roda,
resolver uma adivinha, resolver um problema de
aritmética aplicada a traduzir; desde pedir a
praguejar e a rezar (cf. Investigações filosóficas §
23). Neste ponto já atravessámos O caderno azul e
O caderno castanho (apontamentos de cursos que
Wittgenstein ditou aos seus alunos) e entrámos
decididamente adentro das Investigações
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² Uma peça de teatro designa-se precisamente por Spiel, o actor é o
Spieler, a actriz, a Spielerin, a representação diz-se spielen.
filosóficas, obra a que ele dedicou a maior parte da
sua maturidade e que esteve quase preparada para
ser publicada, mas não chegou a sê-lo senão após a
sua morte (que se deu em 1951).
Uso e significado. Sentido e forma de vida
Por conseguinte, a partir do Tractatus, os conceitos
de sentido, de verdadeiro e de falso, reaparecem
num quadro que, não se opondo simplesmente ao
do Tractatus, implicam, por assim dizer, uma torção,
uma deformação, uma espécie de desdobramento
de uma figura geométrica ainda por determinar.
Mantém-se a concepção da filosofia como uma
actividade em vez de ser uma doutrina, mantém-se
o objectivo de clarificação dos usos da nossa
linguagem, agora, porém, já não para os purificar.
Agora o que lhe interessa são os usos eles mesmos.
É do exercício quotidiano da linguagem, do falar
quotidiano, que o filósofo se ocupa.
Mas, atenção, a afirmação “Deus é bom” continua
insusceptível de demonstração como verdadeira ou
falsa, acrescentando-se, porém, que nunca poderá
ser avaliada como um erro a não ser que se
converta numa teoria. Demonstrações, deduções,
inferências, teorias são operações que Wittgenstein
deixa cair, empenhado em descrever, e ainda mais
em deixar estar como está aquilo que por inerência
está sempre em ordem, a saber, a palavra humana.
Ele descobre que do uso das palavras nas diferentes
frases e contextos depende o significado delas, e
também é nele que está albergada a “forma de