Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 50

Entrevista a Manuel S. Fonseca 50 F1. A edição em Portugal compensa, ou é um esforço vão, ou obriga a mentir-se a si mesmo? Compensou a Ulisses ter ido a Tróia, ter sido cativo dos Ciclopes, amarrar-se a um mastro para escutar a voz Teresa Salgueiro das sereias? Eis a razão pela qual ando nisto, voltar de consciência tranquila a reencontrar Penélope todas as noites e ganhar um dia a improvável imortalidade. É o que se leva da caverna editorial, que dividendos, viste-os – em 14 anos, zerinho, zero euros! F2. Se pudesse escolher, teria preferido ser um editor no estrangeiro, ou continuaria a sê-lo entre nós? Mal deixei de gatinhar, tinha eu cinco aninhos, deslarguei-me deste jardim à beira Atlântico plantado. Quis ser um Europeu errante em África. Voltei, com o rabo entre as pernas e um queixume brando. Seria ingrato negar agora, como Pedro três vezes a Cristo, a Pátria que me voltou a abrir os braços. Até porque houve um erro em que nunca laborei: nunca desertei da língua portuguesa em que edito. Essa língua é o fio de Teseu, e um bocadinho de tesão, que me leva por este borgesiano labirinto de falas, escritas, livros, babélicas estantes, unindo o miúdo que gatinhava a esta terceira idade em que agora moro. Não saberia estar de pé em nenhuma outra língua. F3. E o que se faz é sobretudo apostar no garantido, ou é possível dar a conhecer obras novas? Mais do que apostar, quis inventar. No melhorzinho que porventura tenha feito estão alguns livros que inventei. Inventar um livro para Agustina juntandoa a Paula Rego, inventar com a Dona Mécia um livro de um Sena de escárnio e mal dizer involuntariamente ilustrado pelo próprio, atribuir a Pessoa o seu As Flores do Mal, inventar nos Livros Amarelos a rara, ou talvez única, colecção comparativa do mundo. E se os deuses deixarem que eu tenha descoberto um poeta – peço-vos que leiam Eugénia de Vasconcellos e logo João Moita – um filósofo, um romancista, aí está o que me poria de debruçado Narciso sobre o primeiro charco de água num primaveril dia de chuva. F4. Considera-se um escritor que, paralelamente edita, ou um editor que, por vezes, também se quer dedicar à escrita? Eu desconsidero-me. Já se viu pelas respostas anteriores que deambulo como gado transumante pela pastagem editorial. A escrita é uma leveza nefelibata, que um livro de devoção, tantas vezes lido em voz alta pela minha mãe, Alice Amália, ainda hoje me inspira. Eu sou um caso perdido de derrame melodramático, empolgam-me histórias de mártires, de barcos arrebatados pelas