Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 49

Ando pela casa com as mãos abertas diante do corpo, à procura. Preciso de atear qualquer coisa. Penso nos rituais antigos do bolo e da vela e do fumo que comunga com os deuses e quero um gesto simbólico. Uma oferenda a uma deusa por nomear. Garantir que desta vez acaba mesmo. Procuro uma imagem tua, ver-te-ei arder como uma adolescente despeitada, mas não tenho uma única fotografia. Estão todas no telemóvel. Queimá-lo? Não, pouso tudo no chão da varanda e queimo os bilhetes da nossa primeira viagem de avião. Soltase um fumo tetro e alto que me faz tossir. Penso num desejo, penso em vários, o meu desejar contradiz-se. Oxalá soubesse o que pedir. - Só se concretiza se apagares todas de um só sopro. Ele arregala os olhos às três velas do bolo. Cantamos. As palmas deixam-no excitado mas assustado. Tu inclinas o corpo dele e incita-lo a soprar, mas ele não governa ainda o sei próprio fôlego. É a mãe que as sopra numa retaguarda certeira. Os arabescos do fumo viajam numa vertical: eu conheço esta linha. Procuro-te. Os nossos olhos encontram-se. O teu filho pequeno trinca uma vela e pede um desejo. O fumo sobe. Olhamos o céu. O teu filho mais novo faz anos e o meu nome aparece entre os convidados. Já tinha estado à tua porta mas nunca tinha entrado em tua casa. Está imensa gente, a casa é linda: isto és tu por dentro. Ao procurar uma casa-de-banho faço por me perder pelos quartos, imiscuo-me nas entranhas da vossa rotina. Molduras, memórias, património. Penso outra vez na Amazónia. Reunimo-nos no jardim, junto à piscina, para cantar os «Parabéns». O teu filho é adorável. Falas-lhe com uma ternura quente que nunca tinha visto em ti. Explicas como se usa a vela para pedir um desejo. Dizes: 49