O segredo da vida, nesse tempo africano, estava
mais na minha sobrevivência física do que na força
ou na fortuna desses pobres soldados, sujeitos
como estavam a serem feridos ou a virem morrerme
às mãos. Eu, furriel enfermeiro, representava
uma caução contra a morte. A fé vogava à tona de
uma sobrevivência moral – mas comigo no centro.
Por isso, vinham eles oferecer-se e pedir-me que
os aceitasse como meus guarda-costas. Mas
guardar-me a mim como, se tudo na guerra era um
mistério da ordem do invisível, excepto a morte? O
caso é que o inimigo nunca se via nas emboscadas
que nos montava; as balas passavam por nós como
sopros de abelhas rente aos ouvidos; as minas e
armadilhas só o eram de verdade se nos
apanhassem, por mero acaso, nos misteriosos
trilhos do mato. A mentira da fidelidade desses
soldados para comigo não representava senão uma
conveniência sem orgulho, um egoísmo apenas
hipotético, uma mentira sob a condição de ser eu a
salvar-lhes a pele nos momentos críticos da guerra.
Pretendiam guardar-me, sim; pois que, não
morrendo eu, eles tinham mais uma pequena
hipótese de virem a ser salvos por mim num
momento crítico.
No casamento, a relação entre mentira e fidelidade
é ainda pior. O homem casado é fiel à esposa
porque se esquece durante a maior parte do tempo
que é casado, e tangido por um contrato com
cláusulas penais específicas, a mais decisiva das
quais institui a fidelidade como dever contratual
público e como direito do outro sobre ele. O
homem é quem mais depressa perde a consciência
conjugal. A mulher adúltera nem por isso: vive no
pânico da mentira, disfarça mal a culpa, esconde o
remorso da conjugalidade por ela traída, e mente
baixando os olhos, incapaz de olhar nos olhos
aquele a quem traiu. Podemos esquecer-nos dos
amigos: ainda assim só os mais verdadeiros nos
serão fiéis. Somos infiéis ao trabalho e ao emprego
por uma questão de fidelidade ao esquecimento e
à mentira. O que devemos a nós mesmos é não só
uma questão de causa perdida, mas sobretudo um
elogio à nossa capacidade de estabelecer um jogo
perverso com a realidade. A fidelidade é a nossa
Mãe Grande, a única e numerosa mulher de que
falava o poeta Ruy Belo, a maior de todas as
virtudes conjugais. Nós é que não somos filhos
dela – nem dessa Mãe, nem dessa mulher.
47