Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 47

O segredo da vida, nesse tempo africano, estava mais na minha sobrevivência física do que na força ou na fortuna desses pobres soldados, sujeitos como estavam a serem feridos ou a virem morrerme às mãos. Eu, furriel enfermeiro, representava uma caução contra a morte. A fé vogava à tona de uma sobrevivência moral – mas comigo no centro. Por isso, vinham eles oferecer-se e pedir-me que os aceitasse como meus guarda-costas. Mas guardar-me a mim como, se tudo na guerra era um mistério da ordem do invisível, excepto a morte? O caso é que o inimigo nunca se via nas emboscadas que nos montava; as balas passavam por nós como sopros de abelhas rente aos ouvidos; as minas e armadilhas só o eram de verdade se nos apanhassem, por mero acaso, nos misteriosos trilhos do mato. A mentira da fidelidade desses soldados para comigo não representava senão uma conveniência sem orgulho, um egoísmo apenas hipotético, uma mentira sob a condição de ser eu a salvar-lhes a pele nos momentos críticos da guerra. Pretendiam guardar-me, sim; pois que, não morrendo eu, eles tinham mais uma pequena hipótese de virem a ser salvos por mim num momento crítico. No casamento, a relação entre mentira e fidelidade é ainda pior. O homem casado é fiel à esposa porque se esquece durante a maior parte do tempo que é casado, e tangido por um contrato com cláusulas penais específicas, a mais decisiva das quais institui a fidelidade como dever contratual público e como direito do outro sobre ele. O homem é quem mais depressa perde a consciência conjugal. A mulher adúltera nem por isso: vive no pânico da mentira, disfarça mal a culpa, esconde o remorso da conjugalidade por ela traída, e mente baixando os olhos, incapaz de olhar nos olhos aquele a quem traiu. Podemos esquecer-nos dos amigos: ainda assim só os mais verdadeiros nos serão fiéis. Somos infiéis ao trabalho e ao emprego por uma questão de fidelidade ao esquecimento e à mentira. O que devemos a nós mesmos é não só uma questão de causa perdida, mas sobretudo um elogio à nossa capacidade de estabelecer um jogo perverso com a realidade. A fidelidade é a nossa Mãe Grande, a única e numerosa mulher de que falava o poeta Ruy Belo, a maior de todas as virtudes conjugais. Nós é que não somos filhos dela – nem dessa Mãe, nem dessa mulher. 47