A Mentira da Fidelidade
João de Melo
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Devia haver uma teoria universal para o
sentimento. Uma teoria que o encarecesse como
campo de trabalho para o espírito, e também como
segredo intangível da literatura. Toda a memória
literária é essencialmente sentimental. Por
exemplo, o sentido da fidelidade ao outro e a nós
mesmos. E os seus contrários: as mentiras do
pensamento e da vontade nas relações humanas.
Pessoalmente, não acredito muito nas pessoas que
por tudo e nada se declaram fiéis aos que vivem
perto dessa expectativa ou exigência de fidelidade.
Existe uma ideia moral, uma moralidade, uma
práxis que nos torna responsáveis pelo princípio
do ser e pela ética de uma verdade familiar e social
no meio em que vivemos. Mas eu sinto, amiúde e
até mesmo em permanência, a necessidade interior
de “mentir” para ficcionar: pessoas, actos,
emoções, atitudes sociais, artes, ofícios. A ideia da
(in)fidelidade (obscura ou manifesta) desperta em
mim um “desejo de literatura” que me parece
superior à moral e à consciência do real. Não sei
como chamar-lhe. Talvez “tentação literária”. O
escritor Oscar Wilde deixou-nos, a esse propósito,
uma espécie de aforismo que ainda hoje merece
ser citado: “Eu cá resisto a tudo, menos às
tentações.” Falava obviamente de nós, os homens,
e das volúpias masculinas. Ninguém como nós
entranha na sua consciência a perversão mentirosa
da traição.
Que formas haverá de sermos fiéis e verdadeiros
nesta vida?
Falo estritamente por mim, e na minha condição
masculina. Quem, de entre todos nós, se mantém
fiel a si mesmo e aos outros durante toda uma
vida? Não sei, não quero responder. Tudo o que a
esse propósito dissesse valeria duas vezes mais em
relação ao homem do que à mulher. Não sou um
misógino, nem um femeeiro. Mas confesso-me bem
mais agnóstico do que crente na fidelidade do
feminino. Os homens vangloriam-se dos seus
troféus de caça ou conquista; as mulheres
afundam-se no secretismo de um subterrâneo de
silêncio, para nunca serem descobertas na mentira
e na infidelidade – sejam elas de âmbito conjugal
ou de natureza social. Acredito tanto na fidelidade
feminina como na existência de Deus e do Diabo:
um e outro carecem de prova existencial na minha
vida. O mesmo diria da ordem mundanal, das
máquinas obscenas que movem os interesses do
mundo, das verdades que mentem, das mentiras
que dizem a verdade. O meu agnosticismo
conceptual é em tudo idêntico à perda da minha fé,
tanto no sagrado como nas hipocrisias do mundo.
Na minha guerra de África, o problema da
fidelidade e da sua mentira foi sempre uma
questão de sobrevivência grupal. Os soldados que
me eram fiéis disputavam-me entre si, como se eu
fosse o seu anjo da guarda, além de pretender ser
também o anjo de mim mesmo. Julgavam que
podiam transformar-se na minha sombra, quando
na verdade quem a levava consigo pelos caminhos
da noite e do mato era apenas eu, e não eles.