Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 41

Faço das notícias espectáculos circenses. O circo dos telejornais entra nas casas nas horas certas de tantas incertezas. Atirados aos leões, os que me ouvem nem sequer tentam defender-se. São gladiadores mansos, obedientes, a quem ensinaram a acreditar no que quer que seja desde que carimbado pelos media, onde tenho lugar marcado. Gosto da anorexia de pensamento. Daquela magreza doentia dos que pagam para não pensar, para não ver, para não sentir. Daqueles que se deixam embalar pelo canto das sereias, dos que se entregam sem resistência, sem crítica, sem reflexão. Gosto. São-me oxigénio neste campo concentracionário da opinião feita. E também gosto da gula dos que papam lixo e da forma alarve como me aplaudem quando surjo de braço dado com tudo quanto é fácil, menor, vergonhosamente pimba, desbragadamente obsceno, cego e simplório, medonho e medíocre. Gosto. Tenho muitas roupagens. Já me vesti de boatos, daqueles que incendeiam multidões, já me fardei de general a apelar à guerra e usei o fato de ministro a justificar decisões. Frequento os tribunais como se fossem a minha casa, conheçolhes os cantos e tanto uso beca como toga. Sou invisível quando é necessário ser invisível. Mas também apresento provas se for necessário apresentar provas quando sou testemunha credível, daquelas que ninguém ousa contraditar. Há momentos em que desatino. Há momentos em que, cansada, me resguardo. Clandestina, sem ousar sequer respirar, vejo multidões libertas, cheias de cor e garra, pedaços de vida a ansiar, a fazer revoluções, a cantar canções de vitórias improváveis, ou a velar os seus mortos com olhos de ira. Aí, nesses tempos quase sempre breves, tenho calafrios. Nesses momentos rápidos resguardo-me e espero. Os mandadores hão-de chamar-me quando de mim necessitarem. Faço leis para melhor me compor. Abrigo-me muitas vezes nos compêndios de História. Arrancolhes algumas páginas e escrevo-lhes outras, a incensar bravuras e heroísmos. Sou esquecimento e memória inventada. Sou desmemória consciente. Sou vazio. Sou só presente sem passado nem futuro, sou momento que já foi, sem glória, sem História e sem luz. Louca. Sou louca e algoz. 41