Mentira (Confissões.
Sem arrependimentos nem perdões)
Alice Brito
40
Como uma lebre. É assim que corro.
Sou bússola de poderes vários. Astrolábio de
governos. Sou angélica perfídia, sou acientífica e
grotesca, sou pós verdade proferida por néscios e
escutada, seguida e adorada por legiões de idiotas.
Organizo-me. Faço do nada um facto indesmentível
e quando apanhada dou-lhe o nome de opinião. A
verdade, a verdade factual, aquela de que se
necessita para agir, fica sem ânimo nem préstimo, a
um canto, sem rosto nem valor. Vai caindo em
desuso.
Tenho mãos habilidosas como gazuas da finança,
das que abrem linguetas de fechaduras de cofres
onde se guardam segredos incandescentes. Depois
modelo-os ao meu gosto, insinuo, afirmo,
denuncio, faço preço e adjudico. Na substância do
mal me forjo, e surjo cândida, inocente, vestida de
rigor sincero.
Tenho agora amigos fiéis. Aliados inexcedíveis.
Algoritmos complexos, sequenciais,
aparentemente neutros, amigos instrumentais,
veículos prestimosos, são-me agora ombro meigo,
mão solidária, esfalfando-se dia a dia para a
dominação total. Entram bem fundo nas cabeças
das gentes sem cabeça, conhecem-lhes todos os
cantos, todos os desejos inconfessáveis,
emprestam fantasmas e vendem medos, terríficos,
daqueles que instalam tambores no coração.
Falo das crises com olhos brilhantes. Quase se
pressente também o brilho da suástica que trago
tatuada na alma. As crises encantam-me com os
seus gráficos inextricáveis, com aquele manancial
de culpa que distribuo com metalizada
generosidade.
Ninguém desconfia de que as crises são o modo de
governo que escolhi para melhor reinar. Moldo-as
no barro dos números. Números são números e
ninguém suspeita que neles me escondo, como o
ponto no teatro a relembrar deixas.
Encontro-me dia a dia nas mais pequenas coisas.
Na felicidade de comprar por comprar, na
negligência do deitar fora sem tino nem trambelho.
No consumo encontro a alegria que depois se esvai
na perspectiva de nova compra. Aí reside o
efémero contentamento instantâneo, esse éter que
anestesia a vida. Gosto.
E também gosto de capitulações. Embalo-me nas
palavras ardilosas dos que se mudaram para o lado
de lá. Daqueles que usavam a sinceridade das
promessas limpas quando o que estava a dar era a
viragem da História a construir coisas novas.
As traições sempre me foram caríssimas, ternas
amigas que me dão amparo.