Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 40

Mentira (Confissões. Sem arrependimentos nem perdões) Alice Brito 40 Como uma lebre. É assim que corro. Sou bússola de poderes vários. Astrolábio de governos. Sou angélica perfídia, sou acientífica e grotesca, sou pós verdade proferida por néscios e escutada, seguida e adorada por legiões de idiotas. Organizo-me. Faço do nada um facto indesmentível e quando apanhada dou-lhe o nome de opinião. A verdade, a verdade factual, aquela de que se necessita para agir, fica sem ânimo nem préstimo, a um canto, sem rosto nem valor. Vai caindo em desuso. Tenho mãos habilidosas como gazuas da finança, das que abrem linguetas de fechaduras de cofres onde se guardam segredos incandescentes. Depois modelo-os ao meu gosto, insinuo, afirmo, denuncio, faço preço e adjudico. Na substância do mal me forjo, e surjo cândida, inocente, vestida de rigor sincero. Tenho agora amigos fiéis. Aliados inexcedíveis. Algoritmos complexos, sequenciais, aparentemente neutros, amigos instrumentais, veículos prestimosos, são-me agora ombro meigo, mão solidária, esfalfando-se dia a dia para a dominação total. Entram bem fundo nas cabeças das gentes sem cabeça, conhecem-lhes todos os cantos, todos os desejos inconfessáveis, emprestam fantasmas e vendem medos, terríficos, daqueles que instalam tambores no coração. Falo das crises com olhos brilhantes. Quase se pressente também o brilho da suástica que trago tatuada na alma. As crises encantam-me com os seus gráficos inextricáveis, com aquele manancial de culpa que distribuo com metalizada generosidade. Ninguém desconfia de que as crises são o modo de governo que escolhi para melhor reinar. Moldo-as no barro dos números. Números são números e ninguém suspeita que neles me escondo, como o ponto no teatro a relembrar deixas. Encontro-me dia a dia nas mais pequenas coisas. Na felicidade de comprar por comprar, na negligência do deitar fora sem tino nem trambelho. No consumo encontro a alegria que depois se esvai na perspectiva de nova compra. Aí reside o efémero contentamento instantâneo, esse éter que anestesia a vida. Gosto. E também gosto de capitulações. Embalo-me nas palavras ardilosas dos que se mudaram para o lado de lá. Daqueles que usavam a sinceridade das promessas limpas quando o que estava a dar era a viragem da História a construir coisas novas. As traições sempre me foram caríssimas, ternas amigas que me dão amparo.