Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 4

Da mentira e outras virtudes José Pacheco 4 «A mentira é muitas vezes tão involuntária como a respiração.» Machado de Assis «Algumas pessoas nunca dizem uma mentira – se souberem que a verdade pode magoar mais.» Mark Twain Segundo o admirável e rígido Kant, o animal humano elevar-se a pessoa moral implica poder desvendar, na própria razão, O Dever – que se enuncia sempre sob a forma absoluta de um imperativo categórico. Em relação à verdade, o imperativo é simples: devo dizer a verdade em todas as circunstâncias, independentemente dos envolvidos ou das consequências. Não me é lícito mentir, nem por piedade, ou para ajudar meus pais, ou para evitar uma catástrofe (por exemplo). Sabemos que, para Kant, o intuito de salvar a vida de um amigo íntimo, na fuga a um psicopata que o quisesse matar e me perguntasse onde se encontrava ele, não justifica a mentira, nem a tornaria um acto moralmente menos reprovável. Num grupo de debate formado por mim e alguns alunos que ali não vão na qualidade de alunos, mas de bons amantes da discussão, e com os quais, há anos, me reúno regularmente, confrontávamos ideias acerca da pureza da verdade versus a necessidade (ou não) da mentira. Evoquei então, respeitando o anonimato que se impunha, a confissão de uma amiga, professora, que no seu dia livre (uma apetitosa 6ª-feira, suponhamos), tinha o cuidado de sair de casa à hora de sempre e, como se fosse trabalhar, não se esquecendo de transportar a pasta cheia de livros. Isto era, obviamente, um pouco mais do que um pecado de omissão. Era uma encenação, que sempre, aliás, me pareceu deliciosa. Inocente? Não diria tanto. O adjectivo soa-me pouco ajustado a propósito de uma montagem tão detalhada e engenhosa. Estava consciente de que, se a família soubesse da existência de um dia livre no seu horário, ela perdia, na prática, o «dia livre», requisitado e preenchido com outras tarefas ao serviço da família, boleias aos filhos, almoço com o marido já reformado, etc. etc. – podem imaginar. Esta história ilustrou, no grupo de debate, como a mentira pode ser um acto que dificilmente não aceitaríamos com bonomia. Claro que a não considero uma virtude, e o título do editorial contém um óbvio elemento de ironia, e até uma provocação. Entendamo-nos, portanto: idealmente, como meta, a verdade é sempre preferível. Mas na prática, está longe de determinar aquilo que, sem excepção, devemos ou conseguimos fazer, como se não estivessem também em jogo, muitas vezes, razões que a razão desconhece, as da emoção. Kant, sublime e inflexivelmente exigente, cego e surdo ao que não fossem os ditames absolutos de uma