Da mentira e outras virtudes
José Pacheco
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«A mentira é muitas vezes tão involuntária como
a respiração.»
Machado de Assis
«Algumas pessoas nunca dizem uma mentira – se
souberem que a verdade pode magoar mais.»
Mark Twain
Segundo o admirável e rígido Kant, o animal
humano elevar-se a pessoa moral implica poder
desvendar, na própria razão, O Dever – que se
enuncia sempre sob a forma absoluta de um
imperativo categórico. Em relação à verdade, o
imperativo é simples: devo dizer a verdade em
todas as circunstâncias, independentemente dos
envolvidos ou das consequências. Não me é lícito
mentir, nem por piedade, ou para ajudar meus pais,
ou para evitar uma catástrofe (por exemplo).
Sabemos que, para Kant, o intuito de salvar a vida
de um amigo íntimo, na fuga a um psicopata que o
quisesse matar e me perguntasse onde se
encontrava ele, não justifica a mentira, nem a
tornaria um acto moralmente menos reprovável.
Num grupo de debate formado por mim e alguns
alunos que ali não vão na qualidade de alunos, mas
de bons amantes da discussão, e com os quais, há
anos, me reúno regularmente, confrontávamos
ideias acerca da pureza da verdade versus a
necessidade (ou não) da mentira.
Evoquei então, respeitando o anonimato que se
impunha, a confissão de uma amiga, professora, que
no seu dia livre (uma apetitosa 6ª-feira,
suponhamos), tinha o cuidado de sair de casa à hora
de sempre e, como se fosse trabalhar, não se
esquecendo de transportar a pasta cheia de livros.
Isto era, obviamente, um pouco mais do que um
pecado de omissão. Era uma encenação, que
sempre, aliás, me pareceu deliciosa. Inocente? Não
diria tanto. O adjectivo soa-me pouco ajustado a
propósito de uma montagem tão detalhada e
engenhosa. Estava consciente de que, se a família
soubesse da existência de um dia livre no seu
horário, ela perdia, na prática, o «dia livre»,
requisitado e preenchido com outras tarefas ao
serviço da família, boleias aos filhos, almoço com o
marido já reformado, etc. etc. – podem imaginar.
Esta história ilustrou, no grupo de debate, como a
mentira pode ser um acto que dificilmente não
aceitaríamos com bonomia. Claro que a não
considero uma virtude, e o título do editorial
contém um óbvio elemento de ironia, e até uma
provocação. Entendamo-nos, portanto: idealmente,
como meta, a verdade é sempre preferível. Mas na
prática, está longe de determinar aquilo que, sem
excepção, devemos ou conseguimos fazer, como se
não estivessem também em jogo, muitas vezes,
razões que a razão desconhece, as da emoção. Kant,
sublime e inflexivelmente exigente, cego e surdo ao
que não fossem os ditames absolutos de uma