Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 38

Não era uma vez e era José Dias de Souza 38 ERA UMA VEZ um macaco pendurado num galho. Viviam numa floresta. O galho era um bocado de uma árvore, e era também um bocado da floresta. O macaco vivia ali, na floresta, e não numa loja de animais. Se estivesse em trânsito numa loja de animais, estaria à venda, e não para oferta, e muito se ofenderia se não o comprassem. Macaco e galho não podiam viver um sem o outro, como mais adiante se perceberá. O galho era alto e o macaco pequenino, mas o macaco pequenino esgalhava o galho alto como se fosse ele um grande macaco e o galho um mero pauzinho, incapaz de magoar alguém e insuficente para fazer uma fogueira grande. Estavam bem um para o outro, eram o espelho um do outro. Um dia, já aborrecido de ser esgalhado, subido e descido vezes sem conta, o galho alto perguntou ao macaco pequenino: - Por que sobes por mim acima? Não podias ficar lá em baixo? O macaco sentiu-se traído, ou apenas perplexo. Estavam havia tanto tempo juntos que a pergunta lhe pareceu incompreensível. Pensou numa resposta conveniente, que não azedasse a alegre companhia que faziam um ao outro, mas não a achou. Por vezes dava por si sem as palavras convenientes para não ser infiel ao que gostaria de ter dito. - Não dizes nada?, insistiu o galho, abanando levemente as folhas dos seus ramos. Uma brisa súbita acabava de o visitar. Nesse momento, fez-se um nevoeiro na cabeça do macaco. Um nevoeiro que nenhum sol bem disposto conseguisse dissipiar antes do divórcio e da partilhas dos bens, o carro e a casa, o frigorífico e a retrete. Havia sempre tanta tralha para inventariar numa hora desagradável dessas. - Que queres tu que te responda?, respondeu o macaco pequenino. - Diz-me o que queres ouvir e já me ouvirás dizer-to. O macaco era esperto, tão esperto que às vezes tinha vergonha das coisas que dizia ou não chegava a dizer. O galho alto estremeceu, e o macaco pequenino saltou para um galho vizinho, no qual o macaco pequenino parecia agora um gigante. Por um instante, o galho alto sentiu-se aliviado, estava livre daquela companhia que subindo e descendo por ele o deixava por vezes exasperado. E logo já não: o macaco trocara-o por aquele galho absurdamente pequeno, não podia ser, o macaco pertencia-lhe a ele, galho grande, e não àquela miniatura onde o macaco pequenino parecia um gigante. E gritou para o macaco pequenino: - Que estás a fazer aí, macacão? Não sabes que o teu lugar é aqui, a trepar por mim acima?