“O Mito Trágico do Angelus de Millet” era para Dali
a forma de demonstrar como a associação de
interpretações e de análise de fenómenos
delirantes poderiam levar a locais, informações e a
conhecimento, de outra forma, inacessíveis, e ainda
a novas significações, formas e, quem sabe, ao
próprio inconsciente do “Angelus". Para
sistematizar o estudo da obra de Millet, Dalí
estabelece três níveis no seu ensaio: descritivo,
interpretativo e de síntese e interpretação
profunda da obra. No primeiro, Dalí trata de
fenómenos delirantes, fantasias de carácter
obsessivo e “visões” do Angelus. No segundo nível,
procura demonstrar que existe algo na pintura que
não se revela pela simples contemplação, mas
apenas através de uma análise aprofundada e da
associação dos fenómenos descritos no capítulo
precedente. O terceiro capitulo é a conclusão, o
grande final.
Dalí fala da forma como o “Angelus" sempre o
impressionara desde criança. Mais tarde, percebeu
que a pintura não tinha esta relação de
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Paranóia: delírio de associação interpretativa comportando uma
estrutura sistemática – Actividade paranóico-crítica: método espontâneo
de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica
dos fenómenos delirantes. A presença de elementos activos e
sistematizados próprios da paranóia garante o carácter evolutivo e
produtivo da actividade paranóico-crítica. (...) A actividade paranóicocrítica
j. n.o considera os fenómenos e imagens surrealistas
isoladamente, mas pelo contrário, num conjunto coerente de rela..es
sistemáticas e significativas. (pp. 16-17) O Mito Trágico de Salvador
Dalí
exclusividade com ele: a forma como o “Angelus”
afectava tanta gente, fazia da obra uma espécie de
celebridade, um fenómeno social, não existindo na
época pintura que fosse mais reproduzida. Numa
das passagens do livro, Dalí relata que o escultor
Alberto Giacometti quando passava por uma aldeia
das altas montanhas suíças, “teve ocasião de ver um
vendedor cujo burro ia carregado de cromos
reproduzindo uma grande quantidade de imagens e
quadros célebres. Os camponeses que havia visitado,
com uma unanimidade que não deixava de o
surpreender, tinham-se reunido (sem excepção) para
lhe comprar a reprodução do Angelus de Millet; (…)
esses camponeses desconheciam completamente, até
então, a existência da dita imagem bem como das
restantes imagens do lote”.�
A forma como o “Angelus" era capaz de chegar a
tanta gente e de estar presente nas visões e nas
projecções mais singulares convenceram Dalí que a
obra se tratava de mais do que aquilo que
aparentava ser. Debaixo daquilo que o “Angelus”
mostrava, escondia-se uma verdade que, mesmo
invisível, emocionava aqueles que o viam. A sua
atmosfera carregada de mistério, o carácter solene
da verticalidade das duas personagens e uma
angústia suspensa eram facilmente relacionáveis
com a morte. Dalí expõe metodicamente o mito
ancestral que crê estar contido no “Angelus":
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� “O Mito Trágico do Angelus de Millet” de Salvador Dalí, P.60, &etc
edições, 1998
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