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os meus pais tinham tido a possibilidade de
usufruir de silêncio. Depois discutíamos quem
tinha ganho e um de nós dizia, invariavelmente,
que era indecente o outro ter respirado “Ai é?! E
porque é que tu tinhas a boca aberta?!, “És mesmo
estúpido! Não se respira pela boca!”, “Catarina, pede
já desculpa ao teu irmão ou juro que ficas aqui no
meio da autoestrada!”, “Mas foi ele que começou!”,
“Não fui nada!! tu é que és uma mentirosa!”, “E tu
tens mau perder!”. O que tínhamos ganho de tempo
debaixo do túnel, evaporava-se nos segundos que
se seguiam.
Esse tempo expandido que sentia debaixo de
túneis e debaixo de água reflectiam-se agora no
“Angelus”. Ao olhar a pintura, formou-se em mim a
ingénua convicção de que eu e o Millet tínhamos
uma ligação única capaz de transcender séculos e
que entre a minha vida de adolescente suburbana
e a dele não havia qualquer tipo de separação. É
evidente que mais tarde, quando voltei ao
“Angelus”, vim a descobrir que a nossa relação de
exclusividade não era de todo exclusiva. A
melancólica suspensão que sentia com o “Angelus”
era partilhada por metade do mundo. E se existia
alguém cuja relação de intimidade com Millet era
realmente séria, seria Van Gogh que, aquando do
seu internamento, fez 24 reproduções de várias
obras de Millet, entre as quais o “Angelus”.
O “Angelus", completado entre 1857 e 1859, partiu
de uma encomenda feita pelo coleccionador
americano Thomas Gold Appleton, o qual nunca a
recolheu. Embora não se saiba por que razão
Appleton não colectou a pintura, a representação de
camponeses por Millet, sendo tão digna, despertou
suspeitas de que o pintor poderia ser um
revolucionário. Engrandecer as classes
desfavorecidas e torná-las visíveis só podia ser uma
declaração política. Este nascimento trágico da obra
abriu no entanto espaço para que dezenas de olhos
e mãos (revolucionárias ou não) quisessem ter para
si a obra de Millet. O quadro andou de mão em mão,
de coleccionador em coleccionador, de museu em
museu, de país em país durante várias décadas. Em
1932, enquanto estava exposto numa das salas do
Louvre, o “Angelus” foi esfaqueado por um homem
mentalmente perturbado. A forma como a pintura
de Millet opera nas emoções daqueles que a vêem
pode ir da urgência da pose à da sua destruição. No
mesmo ano, Salvador Dali inicia a escrita do seu
livro “O Mito Trágico do Angelus de Millet”, onde
põe em prática a sua “teoria paranóico-crítica” ou
“método do conhecimento irracional baseado na
associação interpretativa-crítica dos fenómenos
delirantes”, cujas bases teóricas tinham origem na
tese de doutoramento de Lacan, “Da psicose
paranóica nas suas relações com a personalidade”�.
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� É com base na psicanálise de Freud e de Lacan que Dali descreve o
seu método, descrito no libro “O Mito trágico do Angelus de millet”: