Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 32

32 os meus pais tinham tido a possibilidade de usufruir de silêncio. Depois discutíamos quem tinha ganho e um de nós dizia, invariavelmente, que era indecente o outro ter respirado “Ai é?! E porque é que tu tinhas a boca aberta?!, “És mesmo estúpido! Não se respira pela boca!”, “Catarina, pede já desculpa ao teu irmão ou juro que ficas aqui no meio da autoestrada!”, “Mas foi ele que começou!”, “Não fui nada!! tu é que és uma mentirosa!”, “E tu tens mau perder!”. O que tínhamos ganho de tempo debaixo do túnel, evaporava-se nos segundos que se seguiam. Esse tempo expandido que sentia debaixo de túneis e debaixo de água reflectiam-se agora no “Angelus”. Ao olhar a pintura, formou-se em mim a ingénua convicção de que eu e o Millet tínhamos uma ligação única capaz de transcender séculos e que entre a minha vida de adolescente suburbana e a dele não havia qualquer tipo de separação. É evidente que mais tarde, quando voltei ao “Angelus”, vim a descobrir que a nossa relação de exclusividade não era de todo exclusiva. A melancólica suspensão que sentia com o “Angelus” era partilhada por metade do mundo. E se existia alguém cuja relação de intimidade com Millet era realmente séria, seria Van Gogh que, aquando do seu internamento, fez 24 reproduções de várias obras de Millet, entre as quais o “Angelus”. O “Angelus", completado entre 1857 e 1859, partiu de uma encomenda feita pelo coleccionador americano Thomas Gold Appleton, o qual nunca a recolheu. Embora não se saiba por que razão Appleton não colectou a pintura, a representação de camponeses por Millet, sendo tão digna, despertou suspeitas de que o pintor poderia ser um revolucionário. Engrandecer as classes desfavorecidas e torná-las visíveis só podia ser uma declaração política. Este nascimento trágico da obra abriu no entanto espaço para que dezenas de olhos e mãos (revolucionárias ou não) quisessem ter para si a obra de Millet. O quadro andou de mão em mão, de coleccionador em coleccionador, de museu em museu, de país em país durante várias décadas. Em 1932, enquanto estava exposto numa das salas do Louvre, o “Angelus” foi esfaqueado por um homem mentalmente perturbado. A forma como a pintura de Millet opera nas emoções daqueles que a vêem pode ir da urgência da pose à da sua destruição. No mesmo ano, Salvador Dali inicia a escrita do seu livro “O Mito Trágico do Angelus de Millet”, onde põe em prática a sua “teoria paranóico-crítica” ou “método do conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes”, cujas bases teóricas tinham origem na tese de doutoramento de Lacan, “Da psicose paranóica nas suas relações com a personalidade”�. ____________________ � É com base na psicanálise de Freud e de Lacan que Dali descreve o seu método, descrito no libro “O Mito trágico do Angelus de millet”: