Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 31

Entre o homem e a mulher jaz uma pequena cesta de batatas. As silhuetas de ambos são nítidas no contraluz de fim de dia e o céu e a terra são exemplarmente separados por uma linha de horizonte onde se nota a torre de uma catedral. Jurei ouvir os sinos a tocarem da primeira vez que vi a pintura. Eu não sabia nada sobre o que significava o Angelus, essa oração que ocorre três vezes ao dia, e não sabia nada sobre o que é trabalhar e viver no campo. Entre a nossa casa de Carnaxide e Barbizon em França vão 1655 km. Mas ao olhá-lo senti que eu pertencia a alguma coisa daquele momento suspenso, daquela hora em que o sol desaparece debaixo da terra e nos deixa sozinhos na escuridão a pensar na nossa própria existência. A apresentação do “Angelus" na aula foi também a apresentação do início do Realismo e da representação do real. E isso também me salvou porque estava a tornar-se difícil rever a minha vida de adolescente em Salomés que cortavam cabeças de Joões Baptistas, Sócrates a beberem cicuta, assassinatos de Júlios Césares, coroações múltiplas de Napoleões e uma catrefada de reis, rainhas, princesas, arquiduques, condes, barões e seus amigos aristocratas. Todo este fetichismo histórico, juntamente com a romantização excessiva do viajante solitário que enfrenta a violência do mundo, eram demais para jovens adolescentes que viviam dramas diários apenas por existirem, dores de ossos, de coração e lutas selváticas contra o acne. Todo aquele mundo estava mais perto dos filmes da Disney do que de nós. Por esta razão, o “Angelus" foi também essa entrada numa nova visão do mundo, próxima de pessoas que durante dezenas de anos tinham ficado fora das telas: os invisíveis. E creio que eu me revia nisso, na invisibilidade daquilo que sentia e que tinha tanto medo de partilhar. Quando o “Angelus” me apareceu eu já sabia que a minha mãe ia morrer. A sua luta extraordinária dava agora sinais de estar a chegar ao fim. Eu olhava o “Angelus" e sentia naquela pintura tão cheia de uma melancolia digna, que o tempo podia ser suspenso. Aquele era um tempo que me lembrava um jogo que eu e o meu irmão tínhamos quando íamos de carro numa viagem longa com os meus pais. Sempre que víamos um túnel a aproximar-se, nem precisávamos de falar: inspirávamos fundo e contínhamos o ar durante todo o comprimento daquele bocado de estrada que ficava debaixo de alguma coisa. Nesse momento, era como se mergulhássemos debaixo de água, contando o tempo que cada um era capaz de suportar. E tal como debaixo de água, os nossos movimentos tornavam-se suspensos, como se o tempo expandisse. Quando finalmente chegávamos ao fim do túnel, eu e o Nuno vínhamos à tona d'água. Para nós tinham passado 5 minutos. Mas é claro que tinham passado 10 segundos nos quais 31