Entre o homem e a mulher jaz uma pequena cesta
de batatas. As silhuetas de ambos são nítidas no
contraluz de fim de dia e o céu e a terra são
exemplarmente separados por uma linha de
horizonte onde se nota a torre de uma catedral.
Jurei ouvir os sinos a tocarem da primeira vez que
vi a pintura. Eu não sabia nada sobre o que
significava o Angelus, essa oração que ocorre três
vezes ao dia, e não sabia nada sobre o que é
trabalhar e viver no campo. Entre a nossa casa de
Carnaxide e Barbizon em França vão 1655 km. Mas
ao olhá-lo senti que eu pertencia a alguma coisa
daquele momento suspenso, daquela hora em que
o sol desaparece debaixo da terra e nos deixa
sozinhos na escuridão a pensar na nossa própria
existência.
A apresentação do “Angelus" na aula foi também a
apresentação do início do Realismo e da
representação do real. E isso também me salvou
porque estava a tornar-se difícil rever a minha vida
de adolescente em Salomés que cortavam cabeças
de Joões Baptistas, Sócrates a beberem cicuta,
assassinatos de Júlios Césares, coroações múltiplas
de Napoleões e uma catrefada de reis, rainhas,
princesas, arquiduques, condes, barões e seus
amigos aristocratas. Todo este fetichismo histórico,
juntamente com a romantização excessiva do
viajante solitário que enfrenta a violência do
mundo, eram demais para jovens adolescentes que
viviam dramas diários apenas por existirem, dores
de ossos, de coração e lutas selváticas contra o
acne. Todo aquele mundo estava mais perto dos
filmes da Disney do que de nós. Por esta razão, o
“Angelus" foi também essa entrada numa nova
visão do mundo, próxima de pessoas que durante
dezenas de anos tinham ficado fora das telas: os
invisíveis. E creio que eu me revia nisso, na
invisibilidade daquilo que sentia e que tinha tanto
medo de partilhar.
Quando o “Angelus” me apareceu eu já sabia que a
minha mãe ia morrer. A sua luta extraordinária dava
agora sinais de estar a chegar ao fim. Eu olhava o
“Angelus" e sentia naquela pintura tão cheia de
uma melancolia digna, que o tempo podia ser
suspenso. Aquele era um tempo que me lembrava
um jogo que eu e o meu irmão tínhamos quando
íamos de carro numa viagem longa com os meus
pais. Sempre que víamos um túnel a aproximar-se,
nem precisávamos de falar: inspirávamos fundo e
contínhamos o ar durante todo o comprimento
daquele bocado de estrada que ficava debaixo de
alguma coisa. Nesse momento, era como se
mergulhássemos debaixo de água, contando o
tempo que cada um era capaz de suportar. E tal
como debaixo de água, os nossos movimentos
tornavam-se suspensos, como se o tempo
expandisse. Quando finalmente chegávamos ao
fim do túnel, eu e o Nuno vínhamos à tona d'água.
Para nós tinham passado 5 minutos. Mas é claro
que tinham passado 10 segundos nos quais
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