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É claro que quando eu estava no 11º ano nada
disto me interessava muito. Entre Carnaxide e
Linda-a-Velha-Hard-Core ficava o 2, o 114 ou o 12
que eu apanhava todos os dias para as aulas. A
paisagem de prédios de 12 andares de betão
armado, a desolação da natureza, a falta de um
plano urbanístico e as construções hediondas que
começavam a tapar a serra de Carnaxide (o último
reduto de natureza da região), eram a promessa da
modernidade e do futuro dos anos 70 e que nós
ainda experienciavamos nos anos 90 e 2000. Na
altura, eu e os meus amigos da escola íamos ao
McDonalds de Carnaxide e comíamos double
cheese burguers, big macs triplos, macnuggets x
20, sundays e McFlurys de m&m e batatas fritas
king size e eu percebi que nunca poderia vir a
acreditar em Deus. Quando as aulas acabavam e eu,
por sorte, não tinha ensaios na escola de música,
íamos para casa uns dos outros. Mas antes
fazíamos uma paragem estratégica no Lidl e
comprávamos pizzas ultracongeladas com extra
queijo e pepperoni, garrafas de litro e meio de
coca-cola e sacos de gelo. Algumas amigas minhas
já começavam a falar de dietas e de comida
saudável, mas eu queria provar que não tinha medo
da morte. Mentia na esperança do medo se ir
embora. Jiboiávamos nos sofás enquanto fazíamos
zapping com os dedos gordurosos no comando da
televisão à procura de um filme que,
invariavelmente, tinha de ter um final feliz.
Recordo-me que, nesta altura, me recusava a ver
filmes que tivessem outro tipo de final. A
felicidade tinha de viver em algum lado. Andava de
calças largas e com saias por cima das calças; tinha
quatro tranças na parte da nuca que aos poucos se
transformavam em rastas; usava collants como se
fossem mangas; tinha a bandeira do Tibete cosida
na minha mochila azul; usava tennis de skater
embora não fosse skater; tinha alfinetes de dama a
fazerem de brincos e colheres daquelas finas dos
galões a fazerem de pulseira. Eu era a imagem do
Caos, a personificação da desordem.
Pela intensidade de tudo isto, é-me difícil perceber
como é que uma pintura teve a ousadia de
atravessar os McDonalds, os filmes B (talvez
mesmo D), as bugigangas da feira de Carcavelos, os
concertos de amigos a fazerem covers dos Pearl
Jam, e alojar-se com todo o privilégio no meu
hipocampo. Lembro-me de a ver pela primeira vez
numa aula de História da Arte, num daqueles
acetatos que, quando pousados sobre os mágicos
retroprojectores, tinham a magia de ser perfurados
com a luz que dava corpo à pintura. E foi assim que
vi pela primeira vez o “Angelus” de Jean-François
Millet: é fim de dia e um homem e uma mulher
verticais estão num campo de cultivo. O homem
retirou o chapéu, que agora segura nas mãos, e o
seu rosto olha a terra. A mulher, de perfil e com
uma delicada touca de linho, guarda as mãos em
posição de oração contra o peito e mantém a
cabeça inclinada para o solo.