Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 30

30 É claro que quando eu estava no 11º ano nada disto me interessava muito. Entre Carnaxide e Linda-a-Velha-Hard-Core ficava o 2, o 114 ou o 12 que eu apanhava todos os dias para as aulas. A paisagem de prédios de 12 andares de betão armado, a desolação da natureza, a falta de um plano urbanístico e as construções hediondas que começavam a tapar a serra de Carnaxide (o último reduto de natureza da região), eram a promessa da modernidade e do futuro dos anos 70 e que nós ainda experienciavamos nos anos 90 e 2000. Na altura, eu e os meus amigos da escola íamos ao McDonalds de Carnaxide e comíamos double cheese burguers, big macs triplos, macnuggets x 20, sundays e McFlurys de m&m e batatas fritas king size e eu percebi que nunca poderia vir a acreditar em Deus. Quando as aulas acabavam e eu, por sorte, não tinha ensaios na escola de música, íamos para casa uns dos outros. Mas antes fazíamos uma paragem estratégica no Lidl e comprávamos pizzas ultracongeladas com extra queijo e pepperoni, garrafas de litro e meio de coca-cola e sacos de gelo. Algumas amigas minhas já começavam a falar de dietas e de comida saudável, mas eu queria provar que não tinha medo da morte. Mentia na esperança do medo se ir embora. Jiboiávamos nos sofás enquanto fazíamos zapping com os dedos gordurosos no comando da televisão à procura de um filme que, invariavelmente, tinha de ter um final feliz. Recordo-me que, nesta altura, me recusava a ver filmes que tivessem outro tipo de final. A felicidade tinha de viver em algum lado. Andava de calças largas e com saias por cima das calças; tinha quatro tranças na parte da nuca que aos poucos se transformavam em rastas; usava collants como se fossem mangas; tinha a bandeira do Tibete cosida na minha mochila azul; usava tennis de skater embora não fosse skater; tinha alfinetes de dama a fazerem de brincos e colheres daquelas finas dos galões a fazerem de pulseira. Eu era a imagem do Caos, a personificação da desordem. Pela intensidade de tudo isto, é-me difícil perceber como é que uma pintura teve a ousadia de atravessar os McDonalds, os filmes B (talvez mesmo D), as bugigangas da feira de Carcavelos, os concertos de amigos a fazerem covers dos Pearl Jam, e alojar-se com todo o privilégio no meu hipocampo. Lembro-me de a ver pela primeira vez numa aula de História da Arte, num daqueles acetatos que, quando pousados sobre os mágicos retroprojectores, tinham a magia de ser perfurados com a luz que dava corpo à pintura. E foi assim que vi pela primeira vez o “Angelus” de Jean-François Millet: é fim de dia e um homem e uma mulher verticais estão num campo de cultivo. O homem retirou o chapéu, que agora segura nas mãos, e o seu rosto olha a terra. A mulher, de perfil e com uma delicada touca de linho, guarda as mãos em posição de oração contra o peito e mantém a cabeça inclinada para o solo.