No ano seguinte, Bohlmann regressa aos museus
que visitava com a mulher mas, na sua ausência,
começou a destruir os rostos das pinturas que via.
Provavelmente, no seu mais intimo, ter todos
aqueles olhos a olharem para ele sem a mulher a
seu lado, faziam com que a ausência fosse mais
pressentida e apagar os rostos que tinham sido
testemunhas da união de ambos traria algum
alivio. “Tive de destruir aquilo que os outros
estimavam” deixou Bohlmann escapar num dos
vários interrogatórios a que foi sujeito.
Passava das 10 horas da manhã do dia 10 de Março
de 1914. A denominada “Rokeby Venus” de
Velásquez pousava num cavalete da sala 17 da
National Gallery em Londres. Uma mulher
aproximou-se do quadro e retirou da sua manga
um cutelo de carne: com movimentos certeiros e
rigorosos começou a partir o vidro que cobria a
pintura conseguindo chegar finalmente à tela que
rasgou em vários pontos. O chão do museu tinha
sido recentemente polido o que ajudou a atacante
a ganhar tempo sobre os guardas que
escorregavam enquanto tentavam auxiliar a Venus.
A mulher acabou por ser detida e, no dia seguinte,
já identificada como a sufragista Mary Richardson,
foi condenada a uma pena de seis meses de prisão
por danos maliciosos. Nesse dia explicou: “I have
tried to destroy the picture of the most beautiful
woman in mythological history as a protest against
the Government destroying Mrs Pankhurst, who is
the most beautiful character in modern history.
Justice is an element of beauty as much as colour
and outline on canvas”. No dia anterior ao ataque
da “Rokeby Venus”, Emmeline Pankhurst,
defensora do direito ao voto das mulheres e líder
da Women's Social and Political Union (WSPU),
havia sido presa em circunstâncias
extraordinariamente violentas. Mary Richardson
acreditava que se as pessoas tinham ficado
indignadas com o ataque à pintura, que não era
mais do que uma mera representação da beleza
física, deveriam ficar igualmente - ou até mais
indignadas - com o tratamento do governo a
Emmeline Pankhurst, uma verdadeira
“personificação da beleza moral”. Richardson
insistiu que, enquanto estudante de arte, fora-lhe
difícil danificar uma obra tão bela. No entanto, a
sua mão havia sido forçada pela indiferença do
governo à causa sufragista: “You can get another
picture, but you cannot get a life, as they are killing
Mrs Pankhurst”.
Dürer, cujo auto-retrato inspirou amor e medo ao
longo dos séculos, podia estar certo ao argumentar
que as obras de arte não podem ser responsáveis
por actos de violência humana. Mas a verdade é
que foi na arte que muitos olhos encontraram
consolo e espaço para as suas emoções, que não só
a admiração mas também o ódio. As imagens
criadas pela arte são de tal forma dotadas de vida
que, emocionalmente, o ataque a uma pintura é
comparado ao ataque a um ser humano.
29