Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 29

No ano seguinte, Bohlmann regressa aos museus que visitava com a mulher mas, na sua ausência, começou a destruir os rostos das pinturas que via. Provavelmente, no seu mais intimo, ter todos aqueles olhos a olharem para ele sem a mulher a seu lado, faziam com que a ausência fosse mais pressentida e apagar os rostos que tinham sido testemunhas da união de ambos traria algum alivio. “Tive de destruir aquilo que os outros estimavam” deixou Bohlmann escapar num dos vários interrogatórios a que foi sujeito. Passava das 10 horas da manhã do dia 10 de Março de 1914. A denominada “Rokeby Venus” de Velásquez pousava num cavalete da sala 17 da National Gallery em Londres. Uma mulher aproximou-se do quadro e retirou da sua manga um cutelo de carne: com movimentos certeiros e rigorosos começou a partir o vidro que cobria a pintura conseguindo chegar finalmente à tela que rasgou em vários pontos. O chão do museu tinha sido recentemente polido o que ajudou a atacante a ganhar tempo sobre os guardas que escorregavam enquanto tentavam auxiliar a Venus. A mulher acabou por ser detida e, no dia seguinte, já identificada como a sufragista Mary Richardson, foi condenada a uma pena de seis meses de prisão por danos maliciosos. Nesse dia explicou: “I have tried to destroy the picture of the most beautiful woman in mythological history as a protest against the Government destroying Mrs Pankhurst, who is the most beautiful character in modern history. Justice is an element of beauty as much as colour and outline on canvas”. No dia anterior ao ataque da “Rokeby Venus”, Emmeline Pankhurst, defensora do direito ao voto das mulheres e líder da Women's Social and Political Union (WSPU), havia sido presa em circunstâncias extraordinariamente violentas. Mary Richardson acreditava que se as pessoas tinham ficado indignadas com o ataque à pintura, que não era mais do que uma mera representação da beleza física, deveriam ficar igualmente - ou até mais indignadas - com o tratamento do governo a Emmeline Pankhurst, uma verdadeira “personificação da beleza moral”. Richardson insistiu que, enquanto estudante de arte, fora-lhe difícil danificar uma obra tão bela. No entanto, a sua mão havia sido forçada pela indiferença do governo à causa sufragista: “You can get another picture, but you cannot get a life, as they are killing Mrs Pankhurst”. Dürer, cujo auto-retrato inspirou amor e medo ao longo dos séculos, podia estar certo ao argumentar que as obras de arte não podem ser responsáveis por actos de violência humana. Mas a verdade é que foi na arte que muitos olhos encontraram consolo e espaço para as suas emoções, que não só a admiração mas também o ódio. As imagens criadas pela arte são de tal forma dotadas de vida que, emocionalmente, o ataque a uma pintura é comparado ao ataque a um ser humano. 29