Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 28

28 porque dentro dos olhos dos mortos a luz já não tem nada a desvendar. Num dia de Inverno de 1905, um guarda que vigiava o Alte Pinakothek de Munique, notou que uma das pinturas do museu havia mudado desde a última vez que a vira. Os olhos do auto-retrato de Dürer, os mais famosos olhos da arte alemã, haviam perdido o seu carácter intenso e penetrante. Com a ajuda de um alfinete, alguém havia rasgado ferozmente as pupilas do retrato. Alguém invisível, com uma arma invisível, tentou roubar os olhos de Dürer. Entre os secos relatórios do Alte Pinakothek, os especialistas, curadores, conservadores e restauradores escreveram curiosamente: “Porquê os olhos? Por causa da forma como ele olhava o agressor, é claro. Por causa do penetrante e alarmante olhar de Dürer”. O auto-retrato deste homem, com cabelos prodigiosos e olhos inquietantes, foi beijado, adorado, atacado, carregado nas ruas e montado num altar, como se de um ícone religioso se tratasse. Foi acusado de sacrilégio e de narcisismo. Homens e mulheres amaram-no como se fosse um amante e a escritora Bettina Von Arnim pediu uma cópia da obra que a acompanhava para fins pessoais. Ao longo da história, foram milhares os olhos arrancados a pinturas, frescos, relevos e esculturas. Que forma melhor de privar uma imagem da sua vida do que agredindo os órgãos que dão mais sentido à sua vivacidade? Se não me vês, não me podes tocar. Atacar imagens como se de pessoas se tratasse soa a algo herdado do mais primitivo dos instintos. No entanto, a forma como as imagens operam em nós tem muito mais de emocional e ancestral do que de racional e contemporâneo. De outra forma, porque carregaríamos nós imagens de pessoas amadas nas carteiras e telemóveis? Porque beijaríamos retratos? “Uma imagem não é mais responsável por abusos supersticiosos do que uma arma por um assassinato”, escreveu Dürer. Mas a forma como as imagens nos perturbam, emocionam e levam algumas pessoas à loucura de as destruir, provam exactamente o contrário. Entre 1977 e 2006, o alemão Hans-Joachim Bohlmann vandalizou mais de 50 pinturas. Entre estas estão obras de Rubens, Klee, Willem Drost, Dürer e Bartholomeus Van der Helst. Em quase todos os ataques, Bohlmann espalhou ácido sulfúrico sobre os rostos retratados. Bohlmaan sofria de um distúrbio de personalidade desde criança e aos 16 anos voluntariou-se para um tratamento de choques elétricos na universidade de Kiel. Mais tarde, Bohlmann é submetido a uma lobotomia cujo o resultado foi a diminuição da sua capacidade cognitiva. Bohlmann e a mulher tinham por prática visitarem museus juntos. Mas um dia, enquanto limpava as janelas da casa, a mulher de Bohlmann cai e morre.