Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 27

não entrava; com Caravaggio (o seu Chiaroscuro e a forma como, sem medo, empregava o Tenebrismo) percebi que a luz precisa da escuridão; e quando o Zurbarán se sentou no meu livro de história de arte (já tão ratado do uso que lhe dava) e me colocou o seu “Agnus Dei” à frente, eu senti que tinha de tomar conta daquele ser que não tinha culpa nenhuma dos pecados do mundo mas que, por esses, ia ser sacrificado. O cordeiro de Zurbarán levou-me ao cordeiro de Josefa de Óbidos, nome que eu nunca ouvira mas que passei a amar pela sua ousadia de enfrentar a morte com flores. Se o cordeiro de Zurbarán vivia numa morte austera, o de Josefa vivia rodeado de flores na sua eternidade. Mas não foi apenas o Cordeiro que Josefa de Óbidos ornamentou com flores: na sua obra as flores surgem com tanta regularidade que sempre pensei que para Josefa as flores eram uma espécie de lanterna na escuridão. Eram a sua forma de fugir ao medo da negritude da morte. Uma pequena mentira que a permitia enfrentar todos os dias os fundos negros das suas telas e das suas dúvidas. A forma como os pintores do Renascimento renasciam das trevas e a forma como retratavam a luz a ser acarinhada pela escuridão faziam-me não ter medo daquilo que sentia. Percebi que os olhos daqueles artistas encaravam a morte com o consolo da pintura. Aprendi a ser devota dos olhos. Quando mais tarde conheci, por mero acaso, Santa Luzia decidi que, se fosse católica, ela seria a minha padroeira porque uma mulher que traz os olhos nas mãos toca sempre nos outros quando os vê. Aprendi, ao olhar a Santa Luzia de Francesco del Cossa, que entre as mãos e os olhos não há distância. É evidente que só após a fase de fascínio com toda a iconografia me decidi a ler sobre a história de Santa Luzia cujos os olhos não foram parar às mãos por mero acaso: negando a conversão aos deuses romanos, o imperador Diocleciano ordenou que Luzia fosse levada para uma casa de prostituição. Mas ninguém a conseguiu retirar de casa: nem os soldados do imperador, nem as juntas de bois. Luzia estava enraizada no chão e nada a demovia. Enfurecido, o imperador ordenou que então lhe ateassem fogo. Mas nem a ponta dos cabelos de Luzia ficou chamuscada e o seu vestido conservou-se sem nódoas de cinzas. O imperador, à beira da loucura, ordenou que um soldado arrancasse os olhos de Luzia. O soldado conseguiu e trouxe os olhos numa bandeja. Mas, milagrosamente, nas cavidades vazias do rosto de Luzia nasceram dois novos olhos perfeitos e ainda mais belos do que os anteriores. Vendo que nada funcionava, o imperador ordenou que Luzia fosse decapitada. E a isso Luzia já não conseguiu fugir. Os olhos. Os olhos são a forma que temos para decifrar a luz. E talvez seja por isso que simbolicamente se fecham os olhos aos mortos: . 27