não entrava; com Caravaggio (o seu Chiaroscuro e a
forma como, sem medo, empregava o Tenebrismo)
percebi que a luz precisa da escuridão; e quando o
Zurbarán se sentou no meu livro de história de arte
(já tão ratado do uso que lhe dava) e me colocou o
seu “Agnus Dei” à frente, eu senti que tinha de
tomar conta daquele ser que não tinha culpa
nenhuma dos pecados do mundo mas que, por
esses, ia ser sacrificado. O cordeiro de Zurbarán
levou-me ao cordeiro de Josefa de Óbidos, nome
que eu nunca ouvira mas que passei a amar pela
sua ousadia de enfrentar a morte com flores. Se o
cordeiro de Zurbarán vivia numa morte austera, o
de Josefa vivia rodeado de flores na sua
eternidade. Mas não foi apenas o Cordeiro que
Josefa de Óbidos ornamentou com flores: na sua
obra as flores surgem com tanta regularidade que
sempre pensei que para Josefa as flores eram uma
espécie de lanterna na escuridão. Eram a sua forma
de fugir ao medo da negritude da morte. Uma
pequena mentira que a permitia enfrentar todos os
dias os fundos negros das suas telas e das suas
dúvidas.
A forma como os pintores do Renascimento
renasciam das trevas e a forma como retratavam a
luz a ser acarinhada pela escuridão faziam-me não
ter medo daquilo que sentia. Percebi que os olhos
daqueles artistas encaravam a morte com o
consolo da pintura. Aprendi a ser devota dos olhos.
Quando mais tarde conheci, por mero acaso,
Santa Luzia decidi que, se fosse católica, ela seria a
minha padroeira porque uma mulher que traz os
olhos nas mãos toca sempre nos outros quando os
vê. Aprendi, ao olhar a Santa Luzia de Francesco del
Cossa, que entre as mãos e os olhos não há
distância. É evidente que só após a fase de fascínio
com toda a iconografia me decidi a ler sobre a
história de Santa Luzia cujos os olhos não foram
parar às mãos por mero acaso: negando a
conversão aos deuses romanos, o imperador
Diocleciano ordenou que Luzia fosse levada para
uma casa de prostituição. Mas ninguém a
conseguiu retirar de casa: nem os soldados do
imperador, nem as juntas de bois. Luzia estava
enraizada no chão e nada a demovia. Enfurecido, o
imperador ordenou que então lhe ateassem fogo.
Mas nem a ponta dos cabelos de Luzia ficou
chamuscada e o seu vestido conservou-se sem
nódoas de cinzas. O imperador, à beira da loucura,
ordenou que um soldado arrancasse os olhos de
Luzia. O soldado conseguiu e trouxe os olhos numa
bandeja. Mas, milagrosamente, nas cavidades
vazias do rosto de Luzia nasceram dois novos olhos
perfeitos e ainda mais belos do que os anteriores.
Vendo que nada funcionava, o imperador ordenou
que Luzia fosse decapitada. E a isso Luzia já não
conseguiu fugir.
Os olhos. Os olhos são a forma que temos para
decifrar a luz. E talvez seja por isso que
simbolicamente se fecham os olhos aos mortos:
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