Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 18

18 mais pedreidade que aquella?” “Sim, senhor” respondeu logo o meu mestre. “Eu estou pronto a dizer, “esta pedra é mais pedra que aquella”. E estou prompto a dizer isto se ella fôr maior que a outra, ou tiver mais peso, porque o tamanho e o peso são necessarios a uma pedra para ella ser pedra... ou, principalmente, se ella tiver mais completamente que outra todos os attributos, como v. lhes chama, que uma pedra tem que ter para ser pedra.” “E o que chama v. a uma pedra que v. vê em sonho?” e o F. sorriu. “Chamo-lhe um sonho”, disse o meu mestre Caeiro. “Chamo-lhe um sonho de uma pedra”. “Comprehendo” e o F[ernando] acenou. “V. – como se diria philosophicamente – não distingue a substancia dos attributos. Uma pedra é uma coisa composta de um certo numero de attributos – os necessarios para compôr aquillo a que se chama uma pedra – e de uma certa quantidade de cada attributo, que é o que dá a pedra determinado tamanho, determinada dureza, determinado peso, determinada côr, que a distinguem de outra pedra, sendo comtudo ambas ellas pedras porque teem os mesmos attributos, embora em quantidade differente. Ora isto equivale a negar a existencia real da pedra: a pedra passa a ser simplesmente uma somma de coisas reaes...” “Mas uma somma real! É a soma de um peso real e de um tamanho real e de uma côr real e assim por deante. E porisso é que a pedra, além do tamanho, do peso, etc., tem realidade tambem... Não tem realidade como pedra: tem realidade porque é uma somma de attributos, como v. lhes chama, todos reaes. Como cada attributo tem realidade, a pedra tem-a tambem.” “Voltemos ao sonho”, disse o F[ernando]. “V. a uma pedra que vê em sonho chama um sonho, ou, quando muito, um sonho de uma pedra. Porque diz v. “de uma pedra”? Porque emprega a palavra “pedra”?” “Pela mesma razão que v., quando vê o meu retrato, diz 'isto é o Caeiro' e não quer dizer que seja eu em carne e osso”. Desatámos todos a rir. “Comprehendo e desisto”, disse o Fernando a rir comnosco. Les dieux sont ceux qui ne doutent jamais. Nunca comprehendi tão bem a phrase de Villiers de l'Isle Adam. Esta conversa ficou-me gravada na alma; creio que a reproduzi com uma nitidez que não está longe de tachygraphica, salvo a tachygraphia. Tenho a memoria intensa e clara que é um dos characteristicos de certos typos de loucura. E esta conversa teve um grande resultado. Está claro que foi inconsequente como todas as conversas, e que seria facil provar que, perante uma logica rigorosa, só quem não fallou se não contradisse. Nas affirmações e respostas, interessantes como sempre, do meu mestre Caeiro pode um espirito philosophico encontrar reflexos do que na verdade seriam systemas differentes. Mas, ao conceder isto,