Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 17

Mas uma pedra não é um tamanho e uma pedra não é um peso. Tambem uma pedra não pode existir sem realidade, mas a pedra não é uma realidade.” “Está bem”, respondeu o F[ernando], entre impaciente, apanhante de idéas incertas, e fugirlhe-o-chão. “Mas quando v. diz 'uma pedra tem realidade' v. distingue pedra de realidade.” “Distingo: a pedra não é realidade, tem realidade. A pedra é só pedra.” “E o que quer isso dizer?” “Não sei: está alli. Uma pedra é uma pedra e tem que ter realidade para ser pedra. Uma pedra é uma pedra e tem que ter peso para ser pedra. Um homem não é uma cara mas tem que ter cara para ser homem. Eu não sei porque isto é assim, nem sei mesmo se ha porquê para isto ou para qualquer coisa...” “V. sabe, Caeiro”, disse o F[ernando] reflectivamente: “v. está a elaborar uma philosophia um tanto ou quanto contraria ao que v. pensa e sente. V. está a fazer uma especie de kantismo seu – creando uma pedra-noumenon, uma pedra-em-si.. Eu explico, eu explico.. .” E passou a explicar a these kantiana e como o que Caeiro dissera se conformava mais ou menos com ella. Depois indicou a differença; ou o que, a seu ver, era a differença: “Para Kant esses attributos – peso, tamanho (não realidade) – são conceitos impostos á pedra-em-si pelos nossos sentidos, ou, melhor, pelo facto de que observamos. V. parece indicar que esses conceitos são tão coisas como a propria pedra-em-si. Ora isso é que torna a sua theoria difficil de comprehender, ao passo que a de Kant, verdadeira ou falsa, é perfeitamente comprehensivel.” O meu mestre Caeiro ouvira isto com a maior attenção. Uma ou outra vez piscou os olhos como para sacudir idéas como somnos. E, depois de pensar um bocado, respondeu: “Eu não tenho theorias. Eu não tenho philosophia. Eu vejo mas não sei nada. Chamo a uma pedra uma pedra para a distinguir de uma flor ou de uma arvore, enfim de tudo quanto não seja pedra. Ora cada pedra é differente de outra pedra, mas não é por não ser pedra: é por ter outro tamanho e outro peso e outra fórma e outra cÇor. E tambem por ser outra coisa. Chamo a uma pedra e a outra pedra ambas pedras porque são parecidas uma com a outra naquellas coisas que fazem a gente chamar pedra a uma pedra. Mas na verdade a gente devia dar a cada pedra um nome differente e proprio, como se faz aos homens; isso não se faz porque seria impossivel arranjar tanta palavra, mas não porque fôsse erro...” O F[ernando] P[essoa] atalhou: “Diga-me uma coisa, para esclarecer tudo: v. admitte uma 'pedreidade', por assim dizer, assim como admitte um tamanho e um peso? Assim como v. diz “esta pedra é maior – isto é, tem mais tamanho – que aquella, ou “esta pedra tem mais peso que aquella”, dirá v. tambem “esta pedra é mais pedra do que aquella”? ou, em outras palavras, “esta pedra tem 17