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'então essa chuva não existe'. A não ser, é claro, que
v. queira dizer a chuva tal como é nesse momento:
essa realmente é a que é e se fôsse mais ou menos
era outra. Mas eu quero dizer outra coisa...”
“Está bem, comprehendi perfeitamente”,
atalhei eu.
Antes que eu prosseguisse, para dizer não sei
já o quê, o F[ernando] P[essoa] voltou-se para
Caeiro: “Diga-me v. uma coisa” (e apontou com o
cigarro): “como é que v. considera um sonho? Um
sonho é real ou não?”
“Considero um sonho como considero uma
sombra”, respondeu Caeiro inesperadamente, com
a sua costumada promptidão divina. “Uma sombra
é real mas é menos real que uma pedra. Um sonho
é real – senão não era sonho – mas é menos real
que uma coisa. Ser real é ser assim”.
O F[ernando] P[essoa] tem a vantagem de
viver mais nas idéas do que em si mesmo.
Esqueceu-se não só de que estava argumentando,
mas até da verdade ou falsidade do que ouvia:
entusiasmaram-o as possibilidades metaphysicas
d'esta theoria subita, independentemente da
verdade ou falsidade d'ella. Estes esthetas são
assim.
“Isso é uma idéa admiravel! E é originalissima!
Nunca me tinha occorrido” (E este “nunca me tinha
occorrido”?, tam ingenuamente suggeridor da
natural impossibilidade de occorrer a outrem
qualquer coisa que não tivesse já occorrido a elle,
Fernando?)... “Nunca me tinha occorrido que se
pudesse considerar a realidade como susceptivel
de graus. Isso, de facto, equivale a considerar o Ser
não como uma idéa propriamente abstracta mas
como uma idéa numerica...”
“Isso é um bocado confuso para mim” hesitou
Caeiro “mas parece-me que sim, que é isso. O que
eu quero dizer é isto: ser real é haver outras coisas
reaes, porque não se pode ser real sòsinho; e como
ser real é ser uma coisa que não é essas outras
coisas, é ser differente d'ellas; e como a realidade é
uma coisa como o tamanho ou o peso – senão não
havia realidade – e como todas as coisas são
differentes, não ha coisas eguaes em realidade
como não ha coisas eguaes em tamanho e em peso.
Ha de haver sempre uma differença, embora seja
muito pequena. Ser real é isto.”
“Isso ainda é mais curioso!” exclamou o FP. “V.
então considera a realidade como um attributo das
coisas; assim parece ser, visto que a compara ao
tamanho e ao peso. Mas diga-me uma coisa: qual é
a coisa de que a realidade é um attributo? O que é
que está por traz da realidade?”
“Por traz da realidade?” repetiu o meu mestre
Caeiro. “Por traz da realidade não está nada.
Tambem por traz do tamanho não está nada, e por
traz do peso não está nada.”
“Mas se uma coisa não tiver realidade não
existe, e pode existir sem ter tamanho nem peso...”
“Não se fôr uma coisa que por natureza tenha
tamanho e peso. Uma pedra não pode existir sem
tamanho; uma pedra não pode existir sem peso.