Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 16

16 'então essa chuva não existe'. A não ser, é claro, que v. queira dizer a chuva tal como é nesse momento: essa realmente é a que é e se fôsse mais ou menos era outra. Mas eu quero dizer outra coisa...” “Está bem, comprehendi perfeitamente”, atalhei eu. Antes que eu prosseguisse, para dizer não sei já o quê, o F[ernando] P[essoa] voltou-se para Caeiro: “Diga-me v. uma coisa” (e apontou com o cigarro): “como é que v. considera um sonho? Um sonho é real ou não?” “Considero um sonho como considero uma sombra”, respondeu Caeiro inesperadamente, com a sua costumada promptidão divina. “Uma sombra é real mas é menos real que uma pedra. Um sonho é real – senão não era sonho – mas é menos real que uma coisa. Ser real é ser assim”. O F[ernando] P[essoa] tem a vantagem de viver mais nas idéas do que em si mesmo. Esqueceu-se não só de que estava argumentando, mas até da verdade ou falsidade do que ouvia: entusiasmaram-o as possibilidades metaphysicas d'esta theoria subita, independentemente da verdade ou falsidade d'ella. Estes esthetas são assim. “Isso é uma idéa admiravel! E é originalissima! Nunca me tinha occorrido” (E este “nunca me tinha occorrido”?, tam ingenuamente suggeridor da natural impossibilidade de occorrer a outrem qualquer coisa que não tivesse já occorrido a elle, Fernando?)... “Nunca me tinha occorrido que se pudesse considerar a realidade como susceptivel de graus. Isso, de facto, equivale a considerar o Ser não como uma idéa propriamente abstracta mas como uma idéa numerica...” “Isso é um bocado confuso para mim” hesitou Caeiro “mas parece-me que sim, que é isso. O que eu quero dizer é isto: ser real é haver outras coisas reaes, porque não se pode ser real sòsinho; e como ser real é ser uma coisa que não é essas outras coisas, é ser differente d'ellas; e como a realidade é uma coisa como o tamanho ou o peso – senão não havia realidade – e como todas as coisas são differentes, não ha coisas eguaes em realidade como não ha coisas eguaes em tamanho e em peso. Ha de haver sempre uma differença, embora seja muito pequena. Ser real é isto.” “Isso ainda é mais curioso!” exclamou o FP. “V. então considera a realidade como um attributo das coisas; assim parece ser, visto que a compara ao tamanho e ao peso. Mas diga-me uma coisa: qual é a coisa de que a realidade é um attributo? O que é que está por traz da realidade?” “Por traz da realidade?” repetiu o meu mestre Caeiro. “Por traz da realidade não está nada. Tambem por traz do tamanho não está nada, e por traz do peso não está nada.” “Mas se uma coisa não tiver realidade não existe, e pode existir sem ter tamanho nem peso...” “Não se fôr uma coisa que por natureza tenha tamanho e peso. Uma pedra não pode existir sem tamanho; uma pedra não pode existir sem peso.