Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 12

12 encontrou qualquer referência a este texto (o que parece pouco credível); ou talvez porque este último se ocupava de pintura e escultura, duas artes que Pessoa nunca elogiou muito (uma hipótese que parece mais credível). Em todo o caso, quando Boccioni se refere à «compenetração sintética de planos», podemos pensar no cubismo literário e, em particular, no interseccionismo, e quando defende o «dinamismo universal» e escreve que a sua síntese «se baseia na sensação», podemos evocar, precisamente, o sensacionismo (a partir da tradução espanhola, cujo título é Estética y arte futuristas, Barcelona: Acantilado, 2004, pp. 45 e 85). O sensacionismo ideado por Pessoa baseia-se também no «dinamismo universal», mas coloca especial ênfase no conceito filosófico de multiplicidade. [Toda a tendencia da arte tem sido intellectualizar a sensação] Toda a tendencia da arte tem sido intellectualizar a sensação ou o sentimento. Propomo-nos inverter este processo, e sensacionar a intelligencia. Em vez de partirmos da sensação, partimos da idéa; em vez de empregarmos a intelligencia como mediador plastico, empregamos a sensação. De ahi o character absolutamente frio e intellectual da base da nossa arte. A emoção é em nós, não o fundo da nossa inspiração, mas o processo artistico d'ella. (O symbolismo foi apenas uma obsessão musical. O futurismo não passa, em literatura, de um phenomeno typographico.) A arte é uma mentira que suggere uma verdade. A verdade, porém, é apenas o conceito que fazemos da objectividade. A obra de arte é portanto uma mentira com character objectivo. As characteristicas da objectividade são (1) a multiplicidade, porque, ao passo que me sinto Um, sinto o universo como Muitos; (2) a independencia da minha personalidade, porque sinto que domino em mim, mas não nas cousas; (3) a fatalidade, porque, comquanto em minha consciencia de mim me sinto livre, me sinto compellido como membro do Universo e ao Universo fóra de mim, sinto-o escravo de leis immutaveis. Bem sei que estas minhas impressões são falsas – que eu nem sou uno, nem sou livre, nem domino em mim; como, porém, se trata de uma sensação, não procuramos a verdade além d'ella. (BNP/E3, 88-15)