Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 111

O Friedrich? Por que não o Mil-folhas? Ou o Canivetes, ou… De pé, sobre o muro da ponte, entre uma margem e outra do rio… Às vezes o que é belo não é bom. Mas tem cara, tem corpo. E mete as pernas dele entre as minhas. Talvez o Friedrich… Não vás por aí. Por que não o Mil-folhas, por que não o Canivetes, a senhoria, os sem-abrigo, por que não os três deuses?... Os três deuses? Os três deuses, sim, os três apertados na cama, abraçados uns aos outros. Humm… Não, não, não, não, não. Chega. Um homem vivia na floresta, nunca tinha visto outros homens. Criado por ratazanas, julgava que também era uma. Andava com mãos e pés no chão como elas fazem, como elas lhe tinham ensinado. O corpo maior e menos peludo, a falta da cauda, a menor agilidade, nada o impedia de ser como elas. Quando fechava os olhos, a imagem que tinha de si era a de uma ratazana igualzinha às outras. Não havia espelhos, mas quando chovia as poças que se formavam no chão duplicavam tudo o que o rodeava. Só que ao debruçar-se sobre a água, o homem não identificava a figura que surgia no centro de tudo como sendo ele. As ratazanas, a toda a volta da poça, criavam ao beberem figuras parecidas com elas, mas ele não. Quando, entre elas, se debruçava para beber, no lugar dele aparecia uma figura que só conhecia dali. Nas primeiras vezes ficou assustado, depois habituouse. Não sabia de onde vinha aquilo, mas era assim que as coisas funcionavam. Com certeza, quando as outras ratazanas se debruçavam sobre a água também viam no lugar delas uma figura como aquela. Na natureza e na vida há muitas coisas que não sabemos explicar e com que acabamos por conviver. Coisas misteriosas como o arco-íris no céu, que às vezes também aparecia depois de chover, ou como a figura que surgia no centro do reflexo de todas as coisas que o rodeavam. Uma figura que não tinha nada a ver com ele, ele era uma ratazana, como as outras. A tal figura já não o assustava, mas incomodava-o. Por isso quando chovia não se demorava muito a beber a água das poças, preferia olhar o céu, o arco-íris era muito mais belo do que a figura feia que surgia a meio do duplicado de tudo o que o rodeava. O homem era menos ágil do que as ratazanas, mas tinha mais força do que elas, faziam uma boa equipa. Quando era preciso atacar um animal, as ratazanas cercavam-no rapidamente, o homem demorava sempre mais tempo a chegar mas conseguia amarrar a presa com raízes compridas das árvores, coisa que as outras ratazanas não eram capazes de fazer. Quando o animal estava 111