Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 109

-folhas voltou a andar com motorista e ele se esqueceu da mão na buzina, também não parece ser o apito da fábrica, nem o agudo e ondulante da fábrica de bolos, nem o longo e grave da fábrica de balas, longo e grave como o dos barcos que passam no rio, só que mais longo e mais grave, também não é nenhum barco a passar no rio, nem o apito do comboio antes de desaparecer na curva da linha do caminho-de-ferro. Ou então são todos ao mesmo tempo. E vozes e passos também. Muitas vozes, muitos passos. Sim, há vozes e passos lá fora, o apito não consegue abafá-los completamente. Vêm buscar-me. É isso, vêm buscar-me. Já devem saber de tudo e vêm buscar-me. Por isso este apito que não pára, como noutros tempos os sinos das igrejas a chamar toda a gente, talvez tenham sido os três deuses que avisaram, deve ser isso, chamar toda gente. Para me julgarem. Não vou sair, vou lavar tudo. O sangue nunca desaparece completamente, mas vou lavar tudo. De alto a baixo. E apagar a luz. Não sei o que hei-de fazer com o corpo. Mas sei que não vou sair. Eles que entrem. Se quiserem, eles que entrem. Pego na Ana e meto-me pelo labirinto de caixotes. Não nos vão descobrir. Mesmo eu às vezes percome lá dentro. O Basílio também. Se quisermos ninguém nos encontra. E ficamos ali para sempre. Eles que entrem. Sim, eles que entrem. 9. Mónica Y Basílio Levaram a mercadoria toda. Caixotes, uns em cima dos outros, todos iguais, do chão até ao teto, levaram-nos todos. O labirinto de corredores desfez-se. Caixotes com caixas lá dentro, e dentro das caixas, caixinhas, e nas caixinhas balas, milhares de balas, milhões de balas. Levaram-nas todas. Sobra só este vazio. As paredes, as janelas, a porta, o chão, as raízes da oliveira debaixo do chão. E eu. Truz-truz. Qualquer coisa que diga fica a andar às voltas, tempos e tempos e tempos. Mónicaaaaa… Sou a Mónica, a prima do Basílio, lembram-se de mim? No dia em que a muda morreu, no dia em que a matei, o apito que não parava lá fora não era a gaita-de-beiços do Canivetes, nem a buzina do motorista do Mil-folhas, nem o apito da fábrica de bolos, nem o da fábrica de balas, nem um barco a passar no rio, nem o comboio na curva da linha do caminho-de-ferro, não era nada disso. Era a sirene do recolher obrigatório. A guerra começou. Nesse dia, a sirene fez-se ouvir pela primeira vez e as pessoas correram aflitas para casa. Agora já se habituaram, é a guerra. Num instante as balas que aqui estavam não foram suficientes para o que era preciso na frente de batalha, o armazém ficou vazio. Este e os outros. E ninguém deu por falta da muda. Se alguém deu, 109