-folhas voltou a andar com motorista e ele se
esqueceu da mão na buzina, também não parece
ser o apito da fábrica, nem o agudo e ondulante da
fábrica de bolos, nem o longo e grave da fábrica de
balas, longo e grave como o dos barcos que passam
no rio, só que mais longo e mais grave, também não
é nenhum barco a passar no rio, nem o apito do
comboio antes de desaparecer na curva da linha do
caminho-de-ferro. Ou então são todos ao mesmo
tempo. E vozes e passos também. Muitas vozes,
muitos passos. Sim, há vozes e passos lá fora, o
apito não consegue abafá-los completamente. Vêm
buscar-me. É isso, vêm buscar-me. Já devem saber
de tudo e vêm buscar-me. Por isso este apito que
não pára, como noutros tempos os sinos das igrejas
a chamar toda a gente, talvez tenham sido os três
deuses que avisaram, deve ser isso, chamar toda
gente. Para me julgarem. Não vou sair, vou lavar
tudo. O sangue nunca desaparece completamente,
mas vou lavar tudo. De alto a baixo. E apagar a luz.
Não sei o que hei-de fazer com o corpo. Mas sei
que não vou sair. Eles que entrem. Se quiserem,
eles que entrem.
Pego na Ana e meto-me pelo labirinto de caixotes.
Não nos vão descobrir. Mesmo eu às vezes percome
lá dentro. O Basílio também. Se quisermos
ninguém nos encontra. E ficamos ali para sempre.
Eles que entrem. Sim, eles que entrem.
9. Mónica Y Basílio
Levaram a mercadoria toda. Caixotes, uns em cima
dos outros, todos iguais, do chão até ao teto,
levaram-nos todos. O labirinto de corredores
desfez-se. Caixotes com caixas lá dentro, e dentro
das caixas, caixinhas, e nas caixinhas balas,
milhares de balas, milhões de balas. Levaram-nas
todas. Sobra só este vazio. As paredes, as janelas, a
porta, o chão, as raízes da oliveira debaixo do chão.
E eu. Truz-truz. Qualquer coisa que diga fica a
andar às voltas, tempos e tempos e tempos.
Mónicaaaaa… Sou a Mónica, a prima do Basílio,
lembram-se de mim?
No dia em que a muda morreu, no dia em que a
matei, o apito que não parava lá fora não era a
gaita-de-beiços do Canivetes, nem a buzina do
motorista do Mil-folhas, nem o apito da fábrica de
bolos, nem o da fábrica de balas, nem um barco a
passar no rio, nem o comboio na curva da linha do
caminho-de-ferro, não era nada disso. Era a sirene
do recolher obrigatório. A guerra começou. Nesse
dia, a sirene fez-se ouvir pela primeira vez e as
pessoas correram aflitas para casa. Agora já se
habituaram, é a guerra. Num instante as balas que
aqui estavam não foram suficientes para o que era
preciso na frente de batalha, o armazém ficou
vazio. Este e os outros.
E ninguém deu por falta da muda. Se alguém deu,
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