Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 107

camarada, o jovem camarada era a fingir mas a mulher do Mil-folhas era a sério, e a bala também, estas balas também, e na frente de batalha homens mascarados de soldados, os soldados podem ser a fingir mas os homens são a sério e vão morrer, matar e morrer. As balas estão aqui, os homens ainda não morreram, a mulher do Mil-folhas sim. Entre uma coisa e outra, a muda. A muda não, o corpo dela, lá dentro no corredor feito de caixotes, do chão até ao teto, cheios de balas, o sangue ainda a escorrer, a largura de pouco mais do que um corpo, o sangue a empapar o cartão dos caixotes de baixo, não o sangue dos homens da frente de batalha, homens a fazerem de soldados, nem o da mulher do Mil-folhas no palco, a mulher do Mil-folhas a fazer de jovem camarada, no teto a lâmpada fluorescente a piscar, a criar sombra no sítio onde está a muda, a muda caída de borco como se tivesse tropeçado na extensão que liga o desumidificador, o desumidificador na esquina do corredor de caixotes a fazer barulho e a muda calada, mais calada do que nunca. Se o Canivetes não passasse por aqui tantas vezes, se não se queixasse sempre de haver cada vez menos chapéus-de-chuva para consertar, tesouras para amolar, não tens uma faca para afiar sequer?, não lhe consigo dizer que não, entrego-lhe a faca, sempre a mesma, o Canivetes dá ao pedal, o esmeril roda veloz, a lâmina cada vez mais afiada, e ele não se cala, mais uma casa arrombada, uma família atacada. A faca demasiado afiada junto à minha cama. Peguei nela sem pensar e saltei sobre o vulto. Se o Basílio não lhe tivesse dado a pedra de esmeril nova, talvez a lâmina não tivesse entrado tão fundo no corpo da muda. Tão magrinha, um feixezinho de ossos, mais magrinha ainda do que quando a conheci e me trouxe até aqui. Não podia adivinhar que era ela. A muda. Quem diria? A muda. O caderninho com que andava sempre está todo sujo de sangue mas vêem-se bem os desenhos. E é tão fácil perceber tudo. Como posso ter pensado que a muda tinha engordado quando a comecei a ver roliça? Era mais do que evidente que estava grávida. Fez o desenho e tudo, estava sentada debaixo da oliveira, fez o desenho para eu ver, uma cruz onde pendurou uma bola a fazer de cabeça e uns traços a fazerem de pernas e braços, depois uma bola grande a toda a volta e outra vez a mesma coisa, cabeça, pernas e braços, tão fácil de perceber, ela e a Ana dentro dela. Fez o desenho para eu ver mas eu não vi, não vi nada, vi sem ver. Em cada página um desenho do que lhe ia acontecendo, um desenho mal feito, prestamos pouca atenção ao que é tosco. Debaixo da oliveira, a muda grávida, a desenhar que estava grávida. E eu distraída. Se não fosse tosco, se prestássemos mais atenção. Tão fácil de perceber. 107