camarada, o jovem camarada era a fingir mas a
mulher do Mil-folhas era a sério, e a bala também,
estas balas também, e na frente de batalha homens
mascarados de soldados, os soldados podem ser a
fingir mas os homens são a sério e vão morrer,
matar e morrer. As balas estão aqui, os homens
ainda não morreram, a mulher do Mil-folhas sim.
Entre uma coisa e outra, a muda. A muda não, o
corpo dela, lá dentro no corredor feito de caixotes,
do chão até ao teto, cheios de balas, o sangue
ainda a escorrer, a largura de pouco mais do que
um corpo, o sangue a empapar o cartão dos
caixotes de baixo, não o sangue dos homens da
frente de batalha, homens a fazerem de soldados,
nem o da mulher do Mil-folhas no palco, a mulher
do Mil-folhas a fazer de jovem camarada, no teto a
lâmpada fluorescente a piscar, a criar sombra no
sítio onde está a muda, a muda caída de borco
como se tivesse tropeçado na extensão que liga o
desumidificador, o desumidificador na esquina do
corredor de caixotes a fazer barulho e a muda
calada, mais calada do que nunca.
Se o Canivetes não passasse por aqui tantas vezes,
se não se queixasse sempre de haver cada vez
menos chapéus-de-chuva para consertar, tesouras
para amolar, não tens uma faca para afiar sequer?,
não lhe consigo dizer que não, entrego-lhe a faca,
sempre a mesma, o Canivetes dá ao pedal, o
esmeril roda veloz, a lâmina cada vez mais afiada,
e ele não se cala, mais uma casa arrombada, uma
família atacada. A faca demasiado afiada junto à
minha cama. Peguei nela sem pensar e saltei sobre
o vulto. Se o Basílio não lhe tivesse dado a pedra
de esmeril nova, talvez a lâmina não tivesse
entrado tão fundo no corpo da muda. Tão
magrinha, um feixezinho de ossos, mais magrinha
ainda do que quando a conheci e me trouxe até
aqui. Não podia adivinhar que era ela. A muda.
Quem diria? A muda.
O caderninho com que andava sempre está todo
sujo de sangue mas vêem-se bem os desenhos. E é
tão fácil perceber tudo. Como posso ter pensado
que a muda tinha engordado quando a comecei a
ver roliça? Era mais do que evidente que estava
grávida. Fez o desenho e tudo, estava sentada
debaixo da oliveira, fez o desenho para eu ver, uma
cruz onde pendurou uma bola a fazer de cabeça e
uns traços a fazerem de pernas e braços, depois
uma bola grande a toda a volta e outra vez a
mesma coisa, cabeça, pernas e braços, tão fácil de
perceber, ela e a Ana dentro dela. Fez o desenho
para eu ver mas eu não vi, não vi nada, vi sem ver.
Em cada página um desenho do que lhe ia
acontecendo, um desenho mal feito, prestamos
pouca atenção ao que é tosco. Debaixo da oliveira,
a muda grávida, a desenhar que estava grávida. E
eu distraída. Se não fosse tosco, se prestássemos
mais atenção. Tão fácil de perceber.
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