Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 106

106 trabalhava. O Canivetes deve ter sabido disso, ou então pôs-se simplesmente a inventar. Para calarlhe as mentiras, o meu primo teve de oferecer-lhe uma pedra de esmeril nova. Deixei a luz do armazém acesa. Tenho de apagá-la. Da porta do camarim em diante, caixotes de um lado e caixotes do outro, todos iguais, desde o chão até ao teto, só a largura para uma pessoa passar, pouco mais. Tudo muito ordenado, colunas de caixotes encostadas umas às outras, aqui e ali um desacerto por causa do relevo das raízes por baixo do chão, colunas de caixotes que criam corredores cheios de sombras, mal iluminados por lâmpadas fluorescentes, algumas delas não conseguem manter-se sempre acesas e piscam. Numa esquina ou noutra, desumidificadores a fazerem barulho, ligados a extensões elétricas, é preciso ter cuidado para não tropeçar. Tomaram conta de tudo, os caixotes. Taparam paredes e janelas, só sobrou isto. Entre o camarim do antigo teatrinho, aqui ao fundo, e a porta da rua, um labirinto de caixotes. Estava com medo. Muito medo. O vulto avançava em direção ao berço da Ana. Em vez de paralisar, como dizem que acontece quando se fica em pânico, ataquei. O vulto avançava, atirei-me a ele de um salto. Tinha de defender a Ana, não podia correr riscos. Para nos defendermos, às vezes precisamos de fazer coisas erradas. Matar é errado, muito errado. Eu sei, eu sei. A faca afiada demais, os miseráveis que entram e… O Canivetes faz mal em mentir, faz muito mal. Mentir também é errado. Fazer coisas erradas. Às vezes é preciso fazer coisas erradas. Para defender o que está certo. Não sei o que fazer com o corpo. Levei-o daqui, arrastei-o lá para dentro, não queria que estivesse por perto quando a Ana acordasse. Tenho de apagar a luz. E lavar tudo, há sangue por todo o lado, um rasto de sangue pelos corredores do armazém, uma poça aqui no chão, salpicos pelo camarim todo, nas paredes, na janela, já fechei bem a janela, foi o ar lá de fora que me acordou, de certeza que foi, e o medo das histórias que o Canivetes conta, salpicos de sangue também na cama, no roupeiro, na chaise-longue, no espelho, o mesmo espelho desde o tempo do antigo teatrinho, aquele em que a mulher do Mil-folhas se viu pela última vez antes de entrar em cena e haver uma bala a sério onde devia haver uma bala a fingir, no teatro tudo é a fingir, salpicos de sangue no espelho, não o sangue do jovem camarada da peça, no espelho não mas nas tábuas do palco sim, momentos depois a cabeça a explodir no palco, que é onde tudo acontece, por baixo de caixotes e caixotes cheios de balas, o sangue da mulher do Mil-folhas, o sangue custa a sair, nunca desaparece completamente, milhares de balas, milhões de balas, talvez assim se explique, uma delas perdeuse e foi parar à arma apontada à cabeça do jovem