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trabalhava. O Canivetes deve ter sabido disso, ou
então pôs-se simplesmente a inventar. Para calarlhe
as mentiras, o meu primo teve de oferecer-lhe
uma pedra de esmeril nova.
Deixei a luz do armazém acesa. Tenho de apagá-la.
Da porta do camarim em diante, caixotes de um
lado e caixotes do outro, todos iguais, desde o chão
até ao teto, só a largura para uma pessoa passar,
pouco mais. Tudo muito ordenado, colunas de
caixotes encostadas umas às outras, aqui e ali um
desacerto por causa do relevo das raízes por baixo
do chão, colunas de caixotes que criam corredores
cheios de sombras, mal iluminados por lâmpadas
fluorescentes, algumas delas não conseguem
manter-se sempre acesas e piscam. Numa esquina
ou noutra, desumidificadores a fazerem barulho,
ligados a extensões elétricas, é preciso ter cuidado
para não tropeçar. Tomaram conta de tudo, os
caixotes. Taparam paredes e janelas, só sobrou isto.
Entre o camarim do antigo teatrinho, aqui ao fundo,
e a porta da rua, um labirinto de caixotes.
Estava com medo. Muito medo. O vulto avançava
em direção ao berço da Ana. Em vez de paralisar,
como dizem que acontece quando se fica em
pânico, ataquei. O vulto avançava, atirei-me a ele
de um salto. Tinha de defender a Ana, não podia
correr riscos. Para nos defendermos, às vezes
precisamos de fazer coisas erradas. Matar é errado,
muito errado. Eu sei, eu sei. A faca afiada demais,
os miseráveis que entram e… O Canivetes faz mal
em mentir, faz muito mal. Mentir também é errado.
Fazer coisas erradas. Às vezes é preciso fazer coisas
erradas. Para defender o que está certo.
Não sei o que fazer com o corpo. Levei-o daqui,
arrastei-o lá para dentro, não queria que estivesse
por perto quando a Ana acordasse. Tenho de apagar
a luz. E lavar tudo, há sangue por todo o lado, um
rasto de sangue pelos corredores do armazém, uma
poça aqui no chão, salpicos pelo camarim todo, nas
paredes, na janela, já fechei bem a janela, foi o ar lá
de fora que me acordou, de certeza que foi, e o
medo das histórias que o Canivetes conta, salpicos
de sangue também na cama, no roupeiro, na
chaise-longue, no espelho, o mesmo espelho
desde o tempo do antigo teatrinho, aquele em que
a mulher do Mil-folhas se viu pela última vez antes
de entrar em cena e haver uma bala a sério onde
devia haver uma bala a fingir, no teatro tudo é a
fingir, salpicos de sangue no espelho, não o sangue
do jovem camarada da peça, no espelho não mas
nas tábuas do palco sim, momentos depois a
cabeça a explodir no palco, que é onde tudo
acontece, por baixo de caixotes e caixotes cheios
de balas, o sangue da mulher do Mil-folhas, o
sangue custa a sair, nunca desaparece
completamente, milhares de balas, milhões de
balas, talvez assim se explique, uma delas perdeuse
e foi parar à arma apontada à cabeça do jovem