Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 105

de perder os tostões que ganha na fábrica não deve ser tão grande como antes foi o medo de não conseguir o dinheiro que o júri pedia. Mas agora há também a vergonha e, para controlar os outros, a vergonha é um bom auxiliar do medo. Quando se cruza com a Mónica, o Friedrich baixa os olhos, finge que não a vê. Vai com certeza esquecendo e desistindo do sonho de voar. Talvez a Mónica também vá esquecendo e desistindo do amor por ele, o homem que era o homem do corpo e dos sonhos grandes. Sim, quando estiver tudo em ordem, há espaço para muito mais… setenta e seis, setenta e sete, setenta e oito, oitenta, e dois, e cinco, e oito, noventa, noventa e três, e quatro, seis, noventa e nove, cem. 8. Mónica Não sei o que fazer com o corpo. A Ana não acordou, felizmente não deu por nada. A minha pequenina. Continua a dormir. E estremece. Mas não pelo que aconteceu, estremece sempre muito quando dorme, sonhos ou pesadelos, é difícil distinguir uma coisa da outra. Aflige-me saber tão pouco dela. Tão indefesa, a minha Ana. Se sente a minha mão sossega, o peito fica feito um folezinho, a encher muito e a soprar, a encher muito e a soprar. Mas agora não posso tocar-lhe, tenho as mãos sujas, toda eu estou suja. Devo ter deixado a janela aberta, não sei como. Verifico sempre se fica tudo trancado. Não se pode confiar no que o Canivetes diz, mas acabamos por ter medo. As coisas que ultimamente tem andado a contar, que os miseráveis do norte atacam cidades já não muito longe daqui, entram nas casas, saqueiam, violam e matam. Em cada dia uma história nova, mais cruel que a anterior. Talvez seja mentira o que o Canivetes conta, mas não conseguimos esquecer, cada vez mais miseráveis, cada vez mais perto. As palavras não se esquecem, mesmo que se queira esquecer, não se esquecem, digam verdade ou digam mentira, que as palavras com que se mente são as mesmas com que se diz a verdade. Acabamos por ter medo. Foi com certeza o ar lá de fora que me acordou. Abri os olhos, um vulto avançava, não fazia barulho nenhum. Não se pode confiar no que o Canivetes diz. Há tempos também começou a espalhar que havia trabalhadores da fábrica a morrer, contava que não eram respeitadas as normas de segurança e que por várias vezes explosões tinham matado trabalhadores. A verdade é que até hoje só houve um trabalhador que morreu e a única explosão foi dentro do corpo dele, tinha três filhos pequenos e há semanas que acumulava turnos, dia e noite sem parar. Caiu exausto sobre a máquina com que 105