de perder os tostões que ganha na fábrica não
deve ser tão grande como antes foi o medo de não
conseguir o dinheiro que o júri pedia. Mas agora há
também a vergonha e, para controlar os outros, a
vergonha é um bom auxiliar do medo. Quando se
cruza com a Mónica, o Friedrich baixa os olhos,
finge que não a vê. Vai com certeza esquecendo e
desistindo do sonho de voar. Talvez a Mónica
também vá esquecendo e desistindo do amor por
ele, o homem que era o homem do corpo e dos
sonhos grandes.
Sim, quando estiver tudo em ordem, há espaço
para muito mais… setenta e seis, setenta e sete,
setenta e oito, oitenta, e dois, e cinco, e oito,
noventa, noventa e três, e quatro, seis, noventa e
nove, cem.
8. Mónica
Não sei o que fazer com o corpo.
A Ana não acordou, felizmente não deu por nada. A
minha pequenina. Continua a dormir. E estremece.
Mas não pelo que aconteceu, estremece sempre
muito quando dorme, sonhos ou pesadelos, é
difícil distinguir uma coisa da outra. Aflige-me
saber tão pouco dela. Tão indefesa, a minha Ana. Se
sente a minha mão sossega, o peito fica feito um
folezinho, a encher muito e a soprar, a encher
muito e a soprar. Mas agora não posso tocar-lhe,
tenho as mãos sujas, toda eu estou suja.
Devo ter deixado a janela aberta, não sei como.
Verifico sempre se fica tudo trancado. Não se pode
confiar no que o Canivetes diz, mas acabamos por
ter medo. As coisas que ultimamente tem andado a
contar, que os miseráveis do norte atacam cidades
já não muito longe daqui, entram nas casas,
saqueiam, violam e matam. Em cada dia uma
história nova, mais cruel que a anterior. Talvez seja
mentira o que o Canivetes conta, mas não
conseguimos esquecer, cada vez mais miseráveis,
cada vez mais perto. As palavras não se esquecem,
mesmo que se queira esquecer, não se esquecem,
digam verdade ou digam mentira, que as palavras
com que se mente são as mesmas com que se diz a
verdade. Acabamos por ter medo.
Foi com certeza o ar lá de fora que me acordou.
Abri os olhos, um vulto avançava, não fazia barulho
nenhum. Não se pode confiar no que o Canivetes
diz. Há tempos também começou a espalhar que
havia trabalhadores da fábrica a morrer, contava
que não eram respeitadas as normas de segurança
e que por várias vezes explosões tinham matado
trabalhadores. A verdade é que até hoje só houve
um trabalhador que morreu e a única explosão foi
dentro do corpo dele, tinha três filhos pequenos e
há semanas que acumulava turnos, dia e noite sem
parar. Caiu exausto sobre a máquina com que
105