Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 101

no dia seguinte, entregava o dinheiro ao júri do concurso e partia logo depois. Escondi-me perto da entrada da pensão e fiquei a vigiar o Friedrich. A luz do quarto apagou-se e logo de seguida ele saiu. Ia jantar, eu tinha tempo para vasculhar o quarto todo. Quarto 205. Foi simples forçar a porta. Levava uma lanterna mas preferi acender a luz, não tinha por que me esconder, se alguém me surpreendesse ali, estava simplesmente a recuperar o que era meu. Quando isso acontece, mesmo que tenhamos forçado uma porta, não está certo que nos considerem ladrões. Se a Mónica ou eu tivéssemos pedido ao Friedrich o dinheiro de volta, ele não nos teria dado, mas se não nos dão o que pedimos, temos o direito de ir buscar o que é nosso, o que nos é devido. O roubo era anterior, mesmo sem porta forçada, tinha sido o Friedrich que o tinha cometido, um crime não existe ou deixa de existir consoante haja indícios ou não. Não foi preciso vasculhar nada. A minha pequena mala de viagem já fechada junto à porta, estendida sobre a cama a roupa que com certeza o Friedrich ia vestir no dia seguinte para parecer muito digno perante o júri a quem entregaria o envelope volumoso que estava sobre a mesinha da cabeceira. Era quase como quando os três deuses deixaram o dinheiro à Mónica. Foi só pegar nele e trazê-lo. Estava já aqui a contar o dinheiro, a Ana adormecida junto a mim, quando o motorista do Mil-folhas buzinou. Parou o carro em frente e veio chamar a Mónica. No banco de trás, o Mil-folhas esperava pela minha prima com um anel de noivado cheio de diamantes. Apareci eu. Deixei a Ana a dormir e fui explicar que a Mónica ia estar uns tempos fora. O Mil-folhas não se teria enternecido tanto com a história da avó, se eu não tivesse acrescentado que ficar longe também ajudava a minha prima a esquecer o desgosto amoroso. O ar compungido que o Mil-folhas tinha posto desapareceu e foi quase com entusiasmo que lamentou, pobre avó, felizmente tinha netos dedicados. O Mil-folhas ama a Mónica, fica triste por a nossa avó estar doente, apesar de não existir avó nenhuma, apesar de a Mónica, por quem ele fica triste, nada sofrer com isso, mas fica contente por ela não ser amada pelo homem que ama, mesmo que isso a faça sofrer desmedidamente. É estranho, o amor. … trinta e um, trinta e dois, e três, e quatro, seis, oito, quarenta, quarenta e um, e três, quatro, cinco, sete, cinquenta. Durante um dia ou dois foi a Mónica que apareceu. Aceitou jantar com o Milfolhas. À luz das velas, no último andar do prédio dos ricos, na sala voltada para o rio. Avista-se a ponte, mas fica suficientemente longe para não se conseguir distinguir se o Friedrich voltar a subir para o muro, desesperado por não poder voar. Por esses dias, ele ainda andava de volta da polícia a insistir para investigarem como deve ser, para 101