Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 48

O que pedir Joana Bertholo 48 Li algures que o hábito de colocarmos velas nos bolos de aniversário prossegue uma tradição grega. Era uma oferenda à deusa Ártemis, descrita por Homero na Ilíada como «a das terras selvagens, senhora dos animais». A dádiva incluía um pão doce redondo como a lua, que se viria a tornar no bolo; alumiado por uma vela ao centro, símbolo de vida. Dela subia o fumo cuja função era elevar as nossas preces à morada dos deuses. O fumo sobe. Lembro-me disto enquanto o meu olhar vacila entre imagens televisivas de florestas a arder. Há dois anos estava nesta mesma sala, nesta mesma cadeira, a olhar neste mesmo ecrã os incêndios de Pedrogão. Tu tocavas e eu descia e era um ofício do fogo, o nosso. Acicatávamos uma queimada regeneradora, que me fazia acreditar num novo bioma e numa nova vida. Afinal, continuo sentada nesta cadeira a olhar este ecrã. Agora é a Amazónia que arde. Mudo de canal, arde a floresta Siberiana. O que flagra na imagem é uma calamidade e o que grassa entre nós não é mais uma glória. Mas tu ainda tocas, e eu ainda desço. Entre nós esta insistência de cinzas. Políticos e agentes da autoridade intervêm. Discursam. Prometem imensa coisa que não vão cumprir. Como tu, a mim. O telemóvel toca outra vez: mesmo sabendo que vens surpreendo-me sempre que venhas. Desligo a TV mas não as imagens que pendulam em mim enquanto galopo pelas escadas, com a mesmo urgência das primeiras vezes mas já sem ilusões. Depois de fazermos amor num recanto clandestino, escolhemos uma esplanada sem charme num subúrbio onde achamos que não vão passar conhecidos. Tu fumas um atrás do outro e eu observo as cornucópias que se soltam do teu cigarro e conduzem as nossas preces aos céus. Peço aos deuses que nos protejam dos nervos desta vida dupla. Tu notas o meu olhar elevado, o que há de mais alto, e dizes-me a tua frase predilecta: - Não podemos continuar assim. - E eu vejo a Amazónia arder. Assim inclui pretextos e mentiras, dias roubados ao trabalho e noites roubadas ao sono. Presença roubada à família, verdade roubada ao amor. - Disseram-me que o fogo pode ser bom para a floresta; que alguns fogos fazem bem aos solos, não sei, aos ecossistemas. Que faz parte dos ciclos naturais. Matas o cigarro no cinzeiro de plástico patrocinado por uma marca de gin e deixas-me em casa. Reentro na sala mal iluminada e vejo o reflexo do meu rosto no ecrã apagado. Sento-me na cadeira. Onde há pouco vibrava uma imagem de chamas encontro agora apenas negro. Reflexos de um anseio futuro. Levanto-me.