O que pedir
Joana Bertholo
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Li algures que o hábito de colocarmos velas nos
bolos de aniversário prossegue uma tradição grega.
Era uma oferenda à deusa Ártemis, descrita por
Homero na Ilíada como «a das terras selvagens,
senhora dos animais». A dádiva incluía um pão
doce redondo como a lua, que se viria a tornar no
bolo; alumiado por uma vela ao centro, símbolo de
vida. Dela subia o fumo cuja função era elevar as
nossas preces à morada dos deuses.
O fumo sobe. Lembro-me disto enquanto o meu
olhar vacila entre imagens televisivas de florestas
a arder. Há dois anos estava nesta mesma sala,
nesta mesma cadeira, a olhar neste mesmo ecrã os
incêndios de Pedrogão. Tu tocavas e eu descia e era
um ofício do fogo, o nosso. Acicatávamos uma
queimada regeneradora, que me fazia acreditar
num novo bioma e numa nova vida.
Afinal, continuo sentada nesta cadeira a olhar este
ecrã. Agora é a Amazónia que arde. Mudo de canal,
arde a floresta Siberiana. O que flagra na imagem é
uma calamidade e o que grassa entre nós não é
mais uma glória. Mas tu ainda tocas, e eu ainda
desço. Entre nós esta insistência de cinzas.
Políticos e agentes da autoridade intervêm.
Discursam. Prometem imensa coisa que não vão
cumprir. Como tu, a mim. O telemóvel toca outra
vez: mesmo sabendo que vens surpreendo-me
sempre que venhas.
Desligo a TV mas não as imagens que pendulam em
mim enquanto
galopo pelas escadas, com a mesmo urgência das
primeiras vezes mas já sem ilusões. Depois de
fazermos amor num recanto clandestino,
escolhemos uma esplanada sem charme num
subúrbio onde achamos que não vão passar
conhecidos. Tu fumas um atrás do outro e eu
observo as cornucópias que se soltam do teu
cigarro e conduzem as nossas preces aos céus.
Peço aos deuses que nos protejam dos nervos
desta vida dupla. Tu notas o meu olhar elevado, o
que há de mais alto, e dizes-me a tua frase
predilecta:
- Não podemos continuar assim. - E eu vejo a
Amazónia arder.
Assim inclui pretextos e mentiras, dias roubados ao
trabalho e noites roubadas ao sono. Presença
roubada à família, verdade roubada ao amor.
- Disseram-me que o fogo pode ser bom para a
floresta; que alguns fogos fazem bem aos solos,
não sei, aos ecossistemas. Que faz parte dos ciclos
naturais.
Matas o cigarro no cinzeiro de plástico patrocinado
por uma marca de gin e deixas-me em casa.
Reentro na sala mal iluminada e vejo o reflexo do
meu rosto no ecrã apagado. Sento-me na cadeira.
Onde há pouco vibrava uma imagem de chamas
encontro agora apenas negro. Reflexos de um
anseio futuro. Levanto-me.