Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 46

A Mentira da Fidelidade João de Melo 46 Devia haver uma teoria universal para o sentimento. Uma teoria que o encarecesse como campo de trabalho para o espírito, e também como segredo intangível da literatura. Toda a memória literária é essencialmente sentimental. Por exemplo, o sentido da fidelidade ao outro e a nós mesmos. E os seus contrários: as mentiras do pensamento e da vontade nas relações humanas. Pessoalmente, não acredito muito nas pessoas que por tudo e nada se declaram fiéis aos que vivem perto dessa expectativa ou exigência de fidelidade. Existe uma ideia moral, uma moralidade, uma práxis que nos torna responsáveis pelo princípio do ser e pela ética de uma verdade familiar e social no meio em que vivemos. Mas eu sinto, amiúde e até mesmo em permanência, a necessidade interior de “mentir” para ficcionar: pessoas, actos, emoções, atitudes sociais, artes, ofícios. A ideia da (in)fidelidade (obscura ou manifesta) desperta em mim um “desejo de literatura” que me parece superior à moral e à consciência do real. Não sei como chamar-lhe. Talvez “tentação literária”. O escritor Oscar Wilde deixou-nos, a esse propósito, uma espécie de aforismo que ainda hoje merece ser citado: “Eu cá resisto a tudo, menos às tentações.” Falava obviamente de nós, os homens, e das volúpias masculinas. Ninguém como nós entranha na sua consciência a perversão mentirosa da traição. Que formas haverá de sermos fiéis e verdadeiros nesta vida? Falo estritamente por mim, e na minha condição masculina. Quem, de entre todos nós, se mantém fiel a si mesmo e aos outros durante toda uma vida? Não sei, não quero responder. Tudo o que a esse propósito dissesse valeria duas vezes mais em relação ao homem do que à mulher. Não sou um misógino, nem um femeeiro. Mas confesso-me bem mais agnóstico do que crente na fidelidade do feminino. Os homens vangloriam-se dos seus troféus de caça ou conquista; as mulheres afundam-se no secretismo de um subterrâneo de silêncio, para nunca serem descobertas na mentira e na infidelidade – sejam elas de âmbito conjugal ou de natureza social. Acredito tanto na fidelidade feminina como na existência de Deus e do Diabo: um e outro carecem de prova existencial na minha vida. O mesmo diria da ordem mundanal, das máquinas obscenas que movem os interesses do mundo, das verdades que mentem, das mentiras que dizem a verdade. O meu agnosticismo conceptual é em tudo idêntico à perda da minha fé, tanto no sagrado como nas hipocrisias do mundo. Na minha guerra de África, o problema da fidelidade e da sua mentira foi sempre uma questão de sobrevivência grupal. Os soldados que me eram fiéis disputavam-me entre si, como se eu fosse o seu anjo da guarda, além de pretender ser também o anjo de mim mesmo. Julgavam que podiam transformar-se na minha sombra, quando na verdade quem a levava consigo pelos caminhos da noite e do mato era apenas eu, e não eles.