não era sempre boa e isso não se devia ao que se
julgava o natural desentendimento entre brancos e
negros, ao Salazar cujo retrato estava pendurado
em todas as salas de aula, aos soldados
portugueses que por lá andavam como quem anda
num purgatório. A vida em Luanda não era sempre
boa porque a vida tem sempre cansaços, doenças,
desamores, inimizades, frustrações, desenganos,
chatices atrás de chatices. A vida em Luanda não
era sempre boa mas, de repente, começou a guerra.
Ou terá havido sempre guerra, mas acreditava-se
que o Império estava destinado a ganhar e não se
falava disso. Depois, quando se perdeu guerra e
Império, parece que já não havia muito a dizer.
Sou capaz de jurar que nunca terei ouvido guerra
em Luanda. Quando os adultos queriam falar na
guerra referiam-se a isto porque tudo o que se
nomeia tem consequências. Os adultos diziam, a
vida era tão diferente antes de isto acontecer, ou,
era inevitável que isto acontecesse. Isto podia ser a
revolta dos turras em 61, a revolução na
Metrópole, a chegada a Luanda dos movimentos
independentistas, MPLA, FNLA e UNITA, os tiros, as
vidas alteradas como se um gigante tivesse posto
tudo fora do sítio, até a esperança. A esperança
estava tão fora do sítio que muitos acreditavam
que tudo acabaria bem.
Terá sido por esta altura que comecei a reparar na
omissão de palavras nas conversas dos adultos,
guerra, mortos, independência, descolonização,
e na novidade de outras, comunismo, recolher
obrigatório, racionamento, contentores e ir-embora.
Todos iríamos-embora ainda que o ir-embora nas
conversas não parecesse dramático mas tão-
-somente o fim de uma brincadeira. A linguagem,
tal como a memória, embeleza e desfeia a
realidade, cria outras realidades, mas raramente
descreve o que realmente se passou.
Não esquecerás que houve uma guerra. É fácil não
esquecer, convive-se pacificamente com uma
abstracção, o mal abstracto pouco incomoda. Não
esquecerás os que foram mortos nessa guerra. Os
mortos assim ditos ainda são parte da abstracção
indolor da guerra. Quem, tendo possibilidade, não
descalça o sapato para tirar a pedra? Quem quer
continuar a caminhar até fazer ferida? Não
esquecerás os teus conhecidos e amigos mortos na
guerra, já é mais difícil de cumprir. Não esquecerás
o Zé Manuel e o Hélder que foram mortos em
Luanda em 1975, ao que se julga por soldados da
FNLA. Os assassinos podiam pertencer a outro
movimento de libertação, podiam ser soldados
portugueses, podiam ser civis, as guerras tornam
tudo num jogo de sorte e de azar, num acaso. O Zé
Manuel e o Hélder foram mortos porque, ao terem
desrespeitado o recolher obrigatório, caíram na
cobiça dos que lhes quiseram roubar o carro, um
carro velho. Quem mata dois jovens na flor da
idade para roubar um carro, ainda por cima um
carro velho? perguntavam-se os vizinhos.
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