Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 9

não era sempre boa e isso não se devia ao que se julgava o natural desentendimento entre brancos e negros, ao Salazar cujo retrato estava pendurado em todas as salas de aula, aos soldados portugueses que por lá andavam como quem anda num purgatório. A vida em Luanda não era sempre boa porque a vida tem sempre cansaços, doenças, desamores, inimizades, frustrações, desenganos, chatices atrás de chatices. A vida em Luanda não era sempre boa mas, de repente, começou a guerra. Ou terá havido sempre guerra, mas acreditava-se que o Império estava destinado a ganhar e não se falava disso. Depois, quando se perdeu guerra e Império, parece que já não havia muito a dizer. Sou capaz de jurar que nunca terei ouvido guerra em Luanda. Quando os adultos queriam falar na guerra referiam-se a isto porque tudo o que se nomeia tem consequências. Os adultos diziam, a vida era tão diferente antes de isto acontecer, ou, era inevitável que isto acontecesse. Isto podia ser a revolta dos turras em 61, a revolução na Metrópole, a chegada a Luanda dos movimentos independentistas, MPLA, FNLA e UNITA, os tiros, as vidas alteradas como se um gigante tivesse posto tudo fora do sítio, até a esperança. A esperança estava tão fora do sítio que muitos acreditavam que tudo acabaria bem. Terá sido por esta altura que comecei a reparar na omissão de palavras nas conversas dos adultos, guerra, mortos, independência, descolonização, e na novidade de outras, comunismo, recolher obrigatório, racionamento, contentores e ir-embora. Todos iríamos-embora ainda que o ir-embora nas conversas não parecesse dramático mas tão- -somente o fim de uma brincadeira. A linguagem, tal como a memória, embeleza e desfeia a realidade, cria outras realidades, mas raramente descreve o que realmente se passou. Não esquecerás que houve uma guerra. É fácil não esquecer, convive-se pacificamente com uma abstracção, o mal abstracto pouco incomoda. Não esquecerás os que foram mortos nessa guerra. Os mortos assim ditos ainda são parte da abstracção indolor da guerra. Quem, tendo possibilidade, não descalça o sapato para tirar a pedra? Quem quer continuar a caminhar até fazer ferida? Não esquecerás os teus conhecidos e amigos mortos na guerra, já é mais difícil de cumprir. Não esquecerás o Zé Manuel e o Hélder que foram mortos em Luanda em 1975, ao que se julga por soldados da FNLA. Os assassinos podiam pertencer a outro movimento de libertação, podiam ser soldados portugueses, podiam ser civis, as guerras tornam tudo num jogo de sorte e de azar, num acaso. O Zé Manuel e o Hélder foram mortos porque, ao terem desrespeitado o recolher obrigatório, caíram na cobiça dos que lhes quiseram roubar o carro, um carro velho. Quem mata dois jovens na flor da idade para roubar um carro, ainda por cima um carro velho? perguntavam-se os vizinhos. 9