Então, a memória afinal é isto.
Dulce Maria Cardoso
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Ainda o Império, ainda a Descolonização, ainda a
Ponte Aérea, ainda os Retornados e ainda eu a falar
de isto-tudo, quando isto-tudo se tornou tão
diferente para mim por ter escrito um romance, O
retorno, e nele ter inventado outras memórias que
agora existem tão ou mais em mim do que aquilo
que vivi. A história do Rui, personagem principal do
romance, está agora ao alcance de qualquer um,
mas a minha continua secreta, pelo menos em
parte, porque todas as vidas são secretas, muitas
vezes, mesmo para quem as vive. A estranha
existência das memórias do Rui nos mesmos
acontecimentos históricos e de forma tão mais
partilhável do que as minhas tem vindo a
sobrepor-se-me. Podia pensar que o Rui também
sou eu ou que o Rui sou eu. É verdade uma coisa e
outra e não é verdade nem uma coisa nem outra.
Mas é indubitável que a minha memória também
se constrói dos outros e com os outros, os outros
dão-nos mais existência, dão mais existência ao
que nos acontece. O que existe só em nós está
quase sempre condenado ao esquecimento. Ou à
ilusão.
Não esquecerás. Na noite em que saí de Luanda,
uma noite do início do mês de Julho de 1975,
penso que terá sido a sétima ou oitava, obriguei-
me a uma luta que havia de moldar-me a
existência. Ou então já era um destino e apenas o
cumpri. Na minha vida, muitas vezes não sei o que
é vontade ou é obediência. Obriguei-me a não
esquecer nada do que vivi em Luanda, coisas fáceis
de não esquecer como as casas onde morei, as ruas
dos bairros, a terra vermelha, o embondeiro do
pátio da escola, o cheiro das mangas apodrecidas
no chão do quintal, mas também o que parece
impossível de ser lembrado, o zumbido da
ventoinha durante a sesta, o sorriso da São quando
namorava à janela, a alegria do Sr. Luís a regar a
pitangueira ao fim da tarde. Não esquecerás nada
do que viste e ouviste nos teus dez primeiros de
vida, em Luanda. Decidi ou já estava assim
determinado.
Não terei esquecido muito, ou esqueci e
compensei com a imaginação, mas sempre
acreditei aqueles anos da minha vida intactos
dentro da enganadora galáxia que o passado é em
cada um de nós. O passado existe sempre mais
longe e mais inacessível do que qualquer lugar. E a
infância é um continente perdido, mesmo quando
não se perde um país, como foi o meu caso.
Portanto, em Luanda, as ruas não eram todas a
perder de vista e o mistério da noite a cair tão
abruptamente não era magia, era apenas a
proximidade com a linha do Equador a comandar a
rapidez com que um dia se fazia noite ou uma
noite se fazia dia. O amarelo e o vermelho não
eram mais garridos e a chuva não era sempre
diluviana. Os frutos não eram todos saborosos nem
o mar sempre calmo. Portanto, em Luanda, a vida