Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 8

Então, a memória afinal é isto. Dulce Maria Cardoso 8 Ainda o Império, ainda a Descolonização, ainda a Ponte Aérea, ainda os Retornados e ainda eu a falar de isto-tudo, quando isto-tudo se tornou tão diferente para mim por ter escrito um romance, O retorno, e nele ter inventado outras memórias que agora existem tão ou mais em mim do que aquilo que vivi. A história do Rui, personagem principal do romance, está agora ao alcance de qualquer um, mas a minha continua secreta, pelo menos em parte, porque todas as vidas são secretas, muitas vezes, mesmo para quem as vive. A estranha existência das memórias do Rui nos mesmos acontecimentos históricos e de forma tão mais partilhável do que as minhas tem vindo a sobrepor-se-me. Podia pensar que o Rui também sou eu ou que o Rui sou eu. É verdade uma coisa e outra e não é verdade nem uma coisa nem outra. Mas é indubitável que a minha memória também se constrói dos outros e com os outros, os outros dão-nos mais existência, dão mais existência ao que nos acontece. O que existe só em nós está quase sempre condenado ao esquecimento. Ou à ilusão. Não esquecerás. Na noite em que saí de Luanda, uma noite do início do mês de Julho de 1975, penso que terá sido a sétima ou oitava, obriguei- me a uma luta que havia de moldar-me a existência. Ou então já era um destino e apenas o cumpri. Na minha vida, muitas vezes não sei o que é vontade ou é obediência. Obriguei-me a não esquecer nada do que vivi em Luanda, coisas fáceis de não esquecer como as casas onde morei, as ruas dos bairros, a terra vermelha, o embondeiro do pátio da escola, o cheiro das mangas apodrecidas no chão do quintal, mas também o que parece impossível de ser lembrado, o zumbido da ventoinha durante a sesta, o sorriso da São quando namorava à janela, a alegria do Sr. Luís a regar a pitangueira ao fim da tarde. Não esquecerás nada do que viste e ouviste nos teus dez primeiros de vida, em Luanda. Decidi ou já estava assim determinado. Não terei esquecido muito, ou esqueci e compensei com a imaginação, mas sempre acreditei aqueles anos da minha vida intactos dentro da enganadora galáxia que o passado é em cada um de nós. O passado existe sempre mais longe e mais inacessível do que qualquer lugar. E a infância é um continente perdido, mesmo quando não se perde um país, como foi o meu caso. Portanto, em Luanda, as ruas não eram todas a perder de vista e o mistério da noite a cair tão abruptamente não era magia, era apenas a proximidade com a linha do Equador a comandar a rapidez com que um dia se fazia noite ou uma noite se fazia dia. O amarelo e o vermelho não eram mais garridos e a chuva não era sempre diluviana. Os frutos não eram todos saborosos nem o mar sempre calmo. Portanto, em Luanda, a vida