Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 50

ENTREVISTA A MÁRIO CLÁUDIO F1. Numa entrevista que tem como fio condutor a memória e a nostalgia, deixe-me perguntar-lhe qual a mais antiga cena da infância, que consegue recordar? Creio não ser exactamente uma cena, mas uma visão. Está uma tarde de sol, minha Mãe fica de pé ao lado da cama onde me deito, e usa um vestido branco, estampado com pequenos círculos amarelos. Sinto-me feliz e seguro, e entre o sono e a vigília, num mundo de transparências. F2. Quando escreve sobre pessoas, reais ou fictícias, é de si que no fundo fala, dos seus sentimentos e consciência, ou o escritor apaga-se na descoberta do outro? As personagens agem e falam através de mim, o que não significa que não consigam por vezes pôr- me quase completamente de lado. F3. Como e quando começou a escrever? Revisita com gosto, na sua memória, esses primeiros passos? Relê com prazer o primeiro livro que publicou? Pelos meus catorze anos escrevi um poema que me apareceu no limiar de um ofício a desenvolver, 50 e aconteceu também isso num momento solar. Não releio voluntariamente qualquer livro meu, e quando me vejo forçado a fazê-lo por razões de vária ordem, procedo sempre a contragosto. F4. A ideia de uma busca do tempo perdido é importante para si? Diria que está, de alguma forma, presente na sua obra? O tempo perdido constitui o tecido básico, ou o suporte, da escrita de ficção, isto inclusive na dita “ficção científica”. Mas é no presente que a busca se processa, e daí que quem perde o presente, ou o ignora, fique de mãos vazias. F5. Quem foram os seus mestres literários e como o influenciaram, quer os que conheceu em carne e osso, e com os quais conviveu (onde, e como), quer os que o ensinaram através da obra (e de que obras, principalmente)? Muitos e muitos, e em momentos diversificados. Sem referir a Bíblia, nem os clássicos, Dickens e Melville, Tolstoi e Proust, Virginia Woolf, Wordsworth, Whitman e Eliot. Entre os nossos António Vieira, Camilo, Eça, Aquilino, Agustina, Camões, António Nobre, Sena. Diria que de certo modo frequentei a casa de todos eles, juntei-me à sua mesa, e procurei ouvi-los mais do que ouvir-me, coisa muito rara nos discípulos de todas as épocas.