Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 48

Ora que faço eu com esta saudade repartida por coisas tão diferentes? Esta marcha-atrás em relação ao meu dia-a-dia? Estes episódios, como caroços cuspidos? Estes soluços da memória? Apresento pessoas a que regressarei, e procuro caçar vislumbres de uma atmosfera. É isso que faço. Esse Moçambique, cuja beleza estava tão próxima e adquirida que nem reparava nela, era outro que não aquele Moçambique do declínio, em que eu viveria, depois, sem médicos, nem amigos, nem casa, os últimos dias antes de lhe fugir. Aquela era a Lourenço Marques dos machimbombos vermelhos. A Lourenço Marques das mamanas vendendo maçarocas, assadas ali mesmo, no passeio, sobre um pequeno fogareiro preto, ou das mamanas que nos entregavam, por uma quinhenta, um punhado de amendoim: a medida era a tampinha de um frasco, ou o homem descalço, que esperava pela saída dos meninos, na escola de meu irmão, ou durante os intervalos, para lhes vender chuinga, rebuçados e chupas, de uma caixa que trazia presa por um fio ao pescoço. Paro um instante. Reparo na 48 incongruência entre os olhos da minha memória e a cabeça que tenho hoje. Os olhos com que vejo o passado não cresceram. Continuam sendo os de uma menina de quase seis anos. Em tudo o que vêem, vêem apenas o visível. É sob o encantador visível, que a cabeça, hoje, percebe a pobreza e a humilhação. Aos domingos íamos à missa, na Igreja de Santo António da Polana. Um ritual de encontros de pessoas que se demoravam cá fora, conversando, antes de entrar e, algum tempo depois, à saída, tornavam a demorar-se cá fora, antes de (finalmente) dispersarem pelos respectivos carros. E quem diria que de tudo isto, que possuí inocentemente – que possuí sem o saber – sem o notar – até aos cinco anos, iria lembrar-me muito bem e sentir falta. De tudo. Milhares ou milhões de fragmentos e vibrações compondo episódios, momentos, hábitos. Tudo. Mesmo das missas de domingo na Igreja de Santo António da Polana: brincadeiras estridentes e pagãs da garotada, cá fora, opondo-se ao mundo subaquático e amarelado, que os vitrais criavam no interior da igreja, e em que mergulhávamos, envolvidos por uma espécie de paradoxal silêncio feito de tosses e passos, onde ia vagarosamente penetrando o som do órgão, que um padre alto e magro elevava até ao infinito. E ainda que a velha em que me tornei saiba, por fim, compreender as sombras ocultas sob a luz, os