Ora que faço eu com esta saudade repartida por
coisas tão diferentes? Esta marcha-atrás em
relação ao meu dia-a-dia? Estes episódios, como
caroços cuspidos? Estes soluços da memória?
Apresento pessoas a que regressarei, e procuro
caçar vislumbres de uma atmosfera. É isso que
faço.
Esse Moçambique, cuja beleza estava tão próxima
e adquirida que nem reparava nela, era outro que
não aquele Moçambique do declínio, em que eu
viveria, depois, sem médicos, nem amigos, nem
casa, os últimos dias antes de lhe fugir.
Aquela era a Lourenço Marques dos
machimbombos vermelhos.
A Lourenço Marques das mamanas vendendo
maçarocas, assadas ali mesmo, no passeio, sobre
um pequeno fogareiro preto,
ou das mamanas que nos entregavam, por uma
quinhenta, um punhado de amendoim: a medida
era a tampinha de um frasco,
ou o homem descalço, que esperava pela saída dos
meninos, na escola de meu irmão, ou durante os
intervalos, para lhes vender chuinga, rebuçados e
chupas, de uma caixa que trazia presa por um fio
ao pescoço. Paro um instante. Reparo na
48 incongruência entre os olhos da minha memória e
a cabeça que tenho hoje. Os olhos com que vejo o
passado não cresceram. Continuam sendo os de
uma menina de quase seis anos. Em tudo o que
vêem, vêem apenas o visível. É sob o encantador
visível, que a cabeça, hoje, percebe a pobreza e a
humilhação.
Aos domingos íamos à missa, na Igreja de Santo
António da Polana. Um ritual de encontros de
pessoas que se demoravam cá fora, conversando,
antes de entrar e, algum tempo depois, à saída,
tornavam a demorar-se cá fora, antes de
(finalmente) dispersarem pelos respectivos carros.
E quem diria que de tudo isto, que possuí
inocentemente – que possuí sem o saber – sem o
notar – até aos cinco anos, iria lembrar-me muito
bem e sentir falta. De tudo. Milhares ou milhões de
fragmentos e vibrações compondo episódios,
momentos, hábitos. Tudo. Mesmo das missas de
domingo na Igreja de Santo António da Polana:
brincadeiras estridentes e pagãs da garotada, cá
fora, opondo-se ao mundo subaquático e
amarelado, que os vitrais criavam no interior da
igreja, e em que mergulhávamos, envolvidos por
uma espécie de paradoxal silêncio feito de tosses e
passos, onde ia vagarosamente penetrando o som
do órgão, que um padre alto e magro elevava até
ao infinito.
E ainda que a velha em que me tornei saiba, por
fim, compreender as sombras ocultas sob a luz, os