Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 47

como por medida. «Mais um que pensa que está lá no Xipamanine [sabia lá ela o que seria o Xipamanine, para além de uma ressonância africana], no Xipamanine, a mandar nos pretos», terá quase de certeza pensado a senhora. Estou também daqui a adivinhá-la, quarentas, fumando, porque o tabaco ainda se não tornara cancerígeno, ou só informemente; óculos redondos, à John Lennon, uma camisola canelada de gola alta. A cor é que não consigo ver. Quando fomos reencontrá-lo, semanas após, eu era mais uma menina-turista do que propriamente uma retornada, porque não retornava a lugar algum. Sentia-me maravilhada por vir aprender Portugal; nada saudosa, ainda, da terra de onde partira. A saudade precisa de tempo. Ela é o tempo a latejar sobre o que vemos sem lhe poder tocar. Hoje, olho, ao longe, por um espelho retrovisor, para a terra onde nasci. O melhor Moçambique é o Moçambique da minha memória. Quando vivemos num lugar e num tempo, somos incapazes de usar as antenas do encantamento por esse lugar e por esse tempo, que só a distância e a perda activarão. Eu era feliz e não o sabia. Sei-o agora. Revejo tudo sob um banho de nostalgia que tudo restaura com uma energia e um colorido em que, então, não reparava. Precisamos de nos afastar do quadro para o apreender na beleza do seu todo. Parece que oiço a voz de minha mãe a falar com os nossos criados, o Hilário, que tomava conta de mim, e o Feliciano, que cozinhava e que – penso agora nisso – passava o dia na cozinha; só ao fim da tarde voltava à sua própria casa. Onde moras, perguntava-lhe eu. Como é a tua casa? É longe? É grande? Falava constantemente, e gostava que eu fosse conversar com ele à cozinha, mas nunca respondia a estas perguntas e, na altura, eu não percebia porquê. (O Feliciano morava longíssimo; a casa era pequena; feita em caniço). Tratava-se a si próprio por «Feliciano», na 3ª pessoa: Não liga, menina, o Feliciano está cocuana. E ria, jovem, entreabrindo os lábios sob um bigodinho. Hilário, tão alto, tão grande, com os pés enormes nas suas bonitas sapatilhas, devia ser um miúdo de 15 ou 16 anos. O prazer da sua vida consistia no transístor. Ouvia, no seu radiozinho a pilhas, estações que nos enchiam a casa de tambores, acordes estranhos e vozes estrídulas, cortados momentaneamente por locutores a falar em línguas ininteligíveis para mim, embora as escutasse amiúde quando o Feliciano e o Hilário comunicavam entre si. O Hilário vivia connosco. Dormia num quarto mandado construir no interior da varanda. Esfregava os dentes com um tronco cuja ponta fibrosa e cor-de-caril os deixava bonitos. 47