como por medida.
«Mais um que pensa que está lá no Xipamanine
[sabia lá ela o que seria o Xipamanine, para além
de uma ressonância africana], no Xipamanine, a
mandar nos pretos», terá quase de certeza
pensado a senhora. Estou também daqui a
adivinhá-la, quarentas, fumando, porque o tabaco
ainda se não tornara cancerígeno, ou só
informemente; óculos redondos, à John Lennon,
uma camisola canelada de gola alta. A cor é que
não consigo ver.
Quando fomos reencontrá-lo, semanas após, eu era
mais uma menina-turista do que propriamente uma
retornada, porque não retornava a lugar algum.
Sentia-me maravilhada por vir aprender Portugal;
nada saudosa, ainda, da terra de onde partira. A
saudade precisa de tempo. Ela é o tempo a latejar
sobre o que vemos sem lhe poder tocar.
Hoje, olho, ao longe, por um espelho retrovisor,
para a terra onde nasci. O melhor Moçambique é o
Moçambique da minha memória. Quando vivemos
num lugar e num tempo, somos incapazes de usar
as antenas do encantamento por esse lugar e por
esse tempo, que só a distância e a perda activarão.
Eu era feliz e não o sabia. Sei-o agora. Revejo tudo
sob um banho de nostalgia que tudo restaura com
uma energia e um colorido em que, então, não
reparava. Precisamos de nos afastar do quadro
para o apreender na beleza do seu todo.
Parece que oiço a voz de minha mãe a falar com os
nossos criados, o Hilário, que tomava conta de
mim, e o Feliciano, que cozinhava e que – penso
agora nisso – passava o dia na cozinha; só ao fim da
tarde voltava à sua própria casa.
Onde moras, perguntava-lhe eu. Como é a tua
casa? É longe? É grande?
Falava constantemente, e gostava que eu fosse
conversar com ele à cozinha, mas nunca respondia
a estas perguntas e, na altura, eu não percebia
porquê. (O Feliciano morava longíssimo; a casa era
pequena; feita em caniço). Tratava-se a si próprio
por «Feliciano», na 3ª pessoa: Não liga, menina, o
Feliciano está cocuana. E ria, jovem, entreabrindo
os lábios sob um bigodinho.
Hilário, tão alto, tão grande, com os pés enormes
nas suas bonitas sapatilhas, devia ser um miúdo de
15 ou 16 anos. O prazer da sua vida consistia no
transístor. Ouvia, no seu radiozinho a pilhas,
estações que nos enchiam a casa de tambores,
acordes estranhos e vozes estrídulas, cortados
momentaneamente por locutores a falar em
línguas ininteligíveis para mim, embora as
escutasse amiúde quando o Feliciano e o Hilário
comunicavam entre si.
O Hilário vivia connosco. Dormia num quarto
mandado construir no interior da varanda.
Esfregava os dentes com um tronco cuja ponta
fibrosa e cor-de-caril os deixava bonitos.
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