Olhos de criança
em cabeça de mulher velha
Nuno Vaz
A mãe, o mano & eu ficámos, em Lourenço Marques
(já então com o nome de Maputo), a viver numa
pensão onde, à noite, ouvíamos chorar e gritar
«Acudam! Acudam que ele me mata!», a uma
mulher que, no dia seguinte, ao pequeno-almoço,
conversava naturalmente com seu marido, ou de
mesa para mesa com os demais hóspedes, como se
não tivesse acontecido nada. Eu perguntava à mãe:
«Mas esta não era a senhora que ontem à noite
berrava acudam, acudam que ele me mata?». E a
mãe respondia, apenas: chiu.
Nesses últimos dias – e mesmo antes de irmos para
a pensão, e até antes de o pai partir adiante, para
tratar das coisas no Puto (Portugal), de forma a que
fôssemos reunir-nos depois a ele – já adivinhava
um choro sublimado no ar. Uma garota não é boa
meteorologista de sentimentos, mas eu pressentia
uma atmosfera saturada de tristeza, que me fazia
pensar haver cometido um vago pecado. O pai, a
mãe, o próprio mano, e o Feliciano e o Hilário, que
eram os criados da casa, viviam como se qualquer
coisa se lhes houvesse quebrado dentro. Mas para
uma miúda de praticamente 6 anos, a ideia de uma
separação definitiva não tem esse poder todo. O
«Nunca mais isto» é uma expressão triste, sim,
porque as pessoas a pronunciam de lábios e queixo
a tremer, mas essa imagem da eternidade negativa
não pertence ao mundo de uma criança. De resto, o
46 que era precisamente «isto» que iria perder para
sempre (ou que já tinha perdido, sem o saber)?
As praias? Em Portugal não haveria também praias?
Os passeios à Costa-do-Sol, todos os domingos,
onde o proprietário, um Grego baixo e dramático,
nos recebia de braços abertos, como preparando
um voo? As meninas com quem eu convivia? Mas
não tinham já saído tantas, e não estavam as outras
a tratar da partida?
Mais forte do que tudo, em mim, zunia a ideia de
uma viagem grande, a sério, para longe. Não até à
Ilha de Moçambique, ou ali ao lado, à Namaacha,
mas de avião, em que nunca voara, para uma terra
em que faziam bonecos de neve, e usavam
cachecóis, e luvas, e gorros, e mesmo protectores
de ouvidos. Eu bem queria participar da tristeza
colectiva, mas a excitação da viagem próxima
fazia-me estremecer numa euforia secreta.
Meu pai, assim que pisou o solo do aeroporto de
Lisboa, transformou-se num retornado e num
desempregado.
Dirigira-se, ao fim da sua primeira semana
portuguesa, a uma repartição do IARN. Viajou em
autocarro e metropolitano, e desceu em certa
ponto, confirmando o endereço, rabiscado a lápis
numa folha quadriculada.
Recebeu-o uma senhora a um ponto ou dois de se
fazer antipática; para disfarçar a humilhação de
pedinte, o meu pai, mais que nunca – imagino eu, e
parece-me que estou a vê-lo – incorporou a
dignidade e a firmeza gélidas que lhe assentavam