Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 46

Olhos de criança em cabeça de mulher velha Nuno Vaz A mãe, o mano & eu ficámos, em Lourenço Marques (já então com o nome de Maputo), a viver numa pensão onde, à noite, ouvíamos chorar e gritar «Acudam! Acudam que ele me mata!», a uma mulher que, no dia seguinte, ao pequeno-almoço, conversava naturalmente com seu marido, ou de mesa para mesa com os demais hóspedes, como se não tivesse acontecido nada. Eu perguntava à mãe: «Mas esta não era a senhora que ontem à noite berrava acudam, acudam que ele me mata?». E a mãe respondia, apenas: chiu. Nesses últimos dias – e mesmo antes de irmos para a pensão, e até antes de o pai partir adiante, para tratar das coisas no Puto (Portugal), de forma a que fôssemos reunir-nos depois a ele – já adivinhava um choro sublimado no ar. Uma garota não é boa meteorologista de sentimentos, mas eu pressentia uma atmosfera saturada de tristeza, que me fazia pensar haver cometido um vago pecado. O pai, a mãe, o próprio mano, e o Feliciano e o Hilário, que eram os criados da casa, viviam como se qualquer coisa se lhes houvesse quebrado dentro. Mas para uma miúda de praticamente 6 anos, a ideia de uma separação definitiva não tem esse poder todo. O «Nunca mais isto» é uma expressão triste, sim, porque as pessoas a pronunciam de lábios e queixo a tremer, mas essa imagem da eternidade negativa não pertence ao mundo de uma criança. De resto, o 46 que era precisamente «isto» que iria perder para sempre (ou que já tinha perdido, sem o saber)? As praias? Em Portugal não haveria também praias? Os passeios à Costa-do-Sol, todos os domingos, onde o proprietário, um Grego baixo e dramático, nos recebia de braços abertos, como preparando um voo? As meninas com quem eu convivia? Mas não tinham já saído tantas, e não estavam as outras a tratar da partida? Mais forte do que tudo, em mim, zunia a ideia de uma viagem grande, a sério, para longe. Não até à Ilha de Moçambique, ou ali ao lado, à Namaacha, mas de avião, em que nunca voara, para uma terra em que faziam bonecos de neve, e usavam cachecóis, e luvas, e gorros, e mesmo protectores de ouvidos. Eu bem queria participar da tristeza colectiva, mas a excitação da viagem próxima fazia-me estremecer numa euforia secreta. Meu pai, assim que pisou o solo do aeroporto de Lisboa, transformou-se num retornado e num desempregado. Dirigira-se, ao fim da sua primeira semana portuguesa, a uma repartição do IARN. Viajou em autocarro e metropolitano, e desceu em certa ponto, confirmando o endereço, rabiscado a lápis numa folha quadriculada. Recebeu-o uma senhora a um ponto ou dois de se fazer antipática; para disfarçar a humilhação de pedinte, o meu pai, mais que nunca – imagino eu, e parece-me que estou a vê-lo – incorporou a dignidade e a firmeza gélidas que lhe assentavam