Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 41

deixava apanhar. Por que haveria de ser tão impossível, e aparentemente tão desprezível, ser um pouco feliz? Por que razão o eros se cobria de luto, em lugar de cantar? Como antídoto líamos Boris Vian e troçávamos com ele de Jean-Sol Partre. Que, feitas as contas, nem era assim tão original. Não estava já tudo o que interessava em Kierkegaard? Com a pressa despedíamos também Simone, que achávamos destituída de poesia e de humor, e nos lembrava as professoras azedas do liceu, sempre ávidas do poder de mandar em nós. Tantos anos depois, verifiquei, eu continuava a rejeitar o eros fúnebre, Deus não me preocupava nem um pouco e a angústia existencial de Vergílio enervava-me. Era sem dúvida um grande escritor e um enorme romancista, mas era melhor eu não fazer aquela visita, que cada vez mais me parecia inadequada. Entretanto o elevador chegava ao 6º andar. Regina já tinha aberto a porta e entrei. Por delicadeza. Foi assim que conheci o homem que estava por detrás de Aparição. E que, contra tudo o que eu julgava plausível e apesar de todas as nossas divergências, se tornou um amigo ímpar e fraterno, que ficaria na minha vida. Para sempre. 41