Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 40

Em memória de Vergílio Ferreira Teolinda Gersão Foi Hélder Godinho, que trabalhava apaixonadamente sobre a obra de Vergílio Ferreira, que no fim dos anos 70 teve a ideia de me levar a conhecê-lo. Não sei se disse que não e depois me deixei arrastar, ou se disse que sim por delicadeza. Nessa época acontecia-me por vezes dizer sim apenas por não encontrar de imediato uma forma delicada de dizer não. Na altura eu julgava a delicadeza uma virtude e esforçava-me por não ser indelicada . Por isso me encontrei, sem saber bem como, a subir com Hélder no elevador. Acontecia tudo demasiado depressa e eu ainda não tinha decidido se queria realmente encontrar a pessoa que estava atrás dos livros, sobretudo de um deles : Não sabia se queria conhecer o autor de Aparição. Tinha lido o livro de um fôlego, pela noite adiante, muitos anos atrás, na época em que nós, os que então éramos muito jovens, descobríamos clandestinamente o sexo e o mundo. Na época das grandes revelações incandescentes, em que outro livro, de Fernando Sabino, O Encontro Marcado, (que sempre depois me recusei a reler, no terror de o poder achar banal), me veio também parar às mãos, como se não pudesse ser de outro modo: A abri-lo vinha uma carta de Hélio Pellegrino, que li como se me fosse dirigida. Falava do encontro 40 consigo, com a face no espelho. Mas nessa época o encontro marcado passava sobretudo pelo encontro com o outro, de outro sexo, que trazia a revelação do amor e da alegria. E aí começava o meu imenso diferendo com Vergílio, com o eros fúnebre de Aparição : Por que razão o homem que chega à pequena cidade provinciana se tem de transformar em mensageiro da morte? Por que razão Sofia traduz “hospes” por assassino ? Por que razão o narrador a apunhala com uma arma branca (embora por entreposta pessoa, através de Carolino) ? O homem que chega vem carregado de morte e semeia-a em volta (a morte do pai continuando na morte de Cristina e na do enforcado), e todas elas figuram a morte de Deus, sim, mas por que razão, pela boca do louco que duplica o homem que chega, criar é igual a matar quem se ama e a face de Deus é demoníaca? É verdade que na época o culto da infelicidade estava em moda e nos era apresentado com uma aura de grandeza. Mas aquela linha de pensamento, que aparentava Vergílio com o existencialismo, parecia-nos uma câmara de tortura: expulsavam Deus e ficavam a gritar por ele no vazio, torcendo as mãos de solidão e de orfandade. Nós fechávamos os livros e sorríamos, desconfiando que a frequência dos Seminários religiosos e as leituras demasiado crédulas da filosofia causavam danos irreparáveis a quem se