Em memória de Vergílio Ferreira
Teolinda Gersão
Foi Hélder Godinho, que trabalhava
apaixonadamente sobre a obra de Vergílio Ferreira,
que no fim dos anos 70 teve a ideia de me levar a
conhecê-lo.
Não sei se disse que não e depois me deixei
arrastar, ou se disse que sim por delicadeza. Nessa
época acontecia-me por vezes dizer sim apenas
por não encontrar de imediato uma forma delicada
de dizer não. Na altura eu julgava a delicadeza uma
virtude e esforçava-me por não ser indelicada .
Por isso me encontrei, sem saber bem como, a
subir com Hélder no elevador.
Acontecia tudo demasiado depressa e eu ainda não
tinha decidido se queria realmente encontrar a
pessoa que estava atrás dos livros, sobretudo de
um deles : Não sabia se queria conhecer o autor de
Aparição.
Tinha lido o livro de um fôlego, pela noite adiante,
muitos anos atrás, na época em que nós, os que
então éramos muito jovens, descobríamos
clandestinamente o sexo e o mundo. Na época
das grandes revelações incandescentes, em que
outro livro, de Fernando Sabino, O Encontro
Marcado, (que sempre depois me recusei a reler, no
terror de o poder achar banal), me veio também
parar às mãos, como se não pudesse ser de outro
modo:
A abri-lo vinha uma carta de Hélio Pellegrino, que li
como se me fosse dirigida. Falava do encontro
40 consigo, com a face no espelho. Mas nessa época o
encontro marcado passava sobretudo pelo
encontro com o outro, de outro sexo, que trazia a
revelação do amor e da alegria.
E aí começava o meu imenso diferendo com
Vergílio, com o eros fúnebre de Aparição :
Por que razão o homem que chega à pequena
cidade provinciana se tem de transformar em
mensageiro da morte? Por que razão Sofia traduz
“hospes” por assassino ? Por que razão o narrador
a apunhala com uma arma branca (embora por
entreposta pessoa, através de Carolino) ? O homem
que chega vem carregado de morte e semeia-a em
volta (a morte do pai continuando na morte de
Cristina e na do enforcado), e todas elas figuram a
morte de Deus, sim, mas por que razão, pela boca
do louco que duplica o homem que chega, criar é
igual a matar quem se ama e a face de Deus é
demoníaca?
É verdade que na época o culto da infelicidade
estava em moda e nos era apresentado com uma
aura de grandeza. Mas aquela linha de
pensamento, que aparentava Vergílio com o
existencialismo, parecia-nos uma câmara de
tortura: expulsavam Deus e ficavam a gritar por ele
no vazio, torcendo as mãos de solidão e de
orfandade.
Nós fechávamos os livros e sorríamos,
desconfiando que a frequência dos Seminários
religiosos e as leituras demasiado crédulas da
filosofia causavam danos irreparáveis a quem se