EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
José Pacheco
A maior parte da nossa memória está fora de nós,
numa vibração de chuva, num cheiro de quarto
fechado ou no cheiro de uma primeira labareda […]
Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta
a nossos próprios olhos […] Graças tão-somente a
esse esquecimento é que podemos, de tempos a
tempos, reencontrar o ser que fomos.
Marcel Proust
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1. Quando meu filho era criança e a avó o levava a
um jardim próximo de sua casa, assim que
chegavam, o Duarte dirigia-se rapidamente ao
escorrega e descia por ele; depois, dava um pulo
aos baloiços e sentava-se num, a voar; a seguir,
voltava ao escorrega; e de novo aos baloiços –
detendo-se um instante, entre essas correrias
escorrega-baloiço-escorrega, junto ao banco de
onde a avó o seguia, com os olhos extasiados, para
lhe pedir uma confirmação. «Estou muito divertido,
não estou, avó? Isto é que é divertir-me, não é?
Estou feliz, pois estou?».
Este episódio teve sempre o condão de me fazer rir
e, paradoxalmente, me inquietar. Como se, tão
pequeno, o meu filho já adivinhasse uma
imperfeição no íntimo de todos os momentos
perfeitos. Não acontece – e é pena, quem sabe? –
ou acontece raramente que o momento em que a
felicidade se vive, coincida com a consciência da
felicidade sendo vivida. Não é comum pensarmos:
«Caramba! isto é a felicidade. Estou a ser feliz.
Olha que bom.» Deixamo-nos ir. Apenas.
Estamos demasiado ocupados a fruir, para nos
dedicarmos simultaneamente a reflectir sobre o
prazer e sobre o sentido desse presente. Escrevi
que era talvez uma pena, mas, pensando bem, é
possível que o não seja. Dividirmo-nos em dois
para, no mesmo instante, sermos a pessoa feliz e o
espectador da pessoa feliz, poderia introduzir uma
hesitação na felicidade, um certo retraimento,
alguma diminuição do estado de bem fluir.
Em todo o caso, e está em Proust inteiro, o tempo,
que nos desgasta e envelhece, é também o grande
revelador. Olhamos o passado, revemos os
momentos e, agora que os perdemos, somos
capazes de os compreender luminosamente. Em
1968, na casa da Tia Amelinha e do Tio António,
onde a família se reunia pelo Natal ou pelas festas
de aniversário, e eu e os meus primos brincávamos
até desmaiar de cansaço, fui feliz. Ao longo do
correr dos decénios, em todos os reencontros com
outro primo, meu querido António Maria, com quem
aprontei aventuras que traziam os nossos pais em
polvorosa, fui feliz. De todas as vezes, nos anos 70,
80, 90, ou ainda ontem, em que vivi amizades
avassaladoras e paixões eternas, fui muito, muito,
muito feliz. Ou quando descobri Proust, justamente.
Ou quando me nasceu um filho e quando me
nasceu uma filha. Histórias, situações, momentos,
que recupero, voluntária ou involuntariamente, em