Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 4

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO José Pacheco A maior parte da nossa memória está fora de nós, numa vibração de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro de uma primeira labareda […] Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhos […] Graças tão-somente a esse esquecimento é que podemos, de tempos a tempos, reencontrar o ser que fomos. Marcel Proust 4 1. Quando meu filho era criança e a avó o levava a um jardim próximo de sua casa, assim que chegavam, o Duarte dirigia-se rapidamente ao escorrega e descia por ele; depois, dava um pulo aos baloiços e sentava-se num, a voar; a seguir, voltava ao escorrega; e de novo aos baloiços – detendo-se um instante, entre essas correrias escorrega-baloiço-escorrega, junto ao banco de onde a avó o seguia, com os olhos extasiados, para lhe pedir uma confirmação. «Estou muito divertido, não estou, avó? Isto é que é divertir-me, não é? Estou feliz, pois estou?». Este episódio teve sempre o condão de me fazer rir e, paradoxalmente, me inquietar. Como se, tão pequeno, o meu filho já adivinhasse uma imperfeição no íntimo de todos os momentos perfeitos. Não acontece – e é pena, quem sabe? – ou acontece raramente que o momento em que a felicidade se vive, coincida com a consciência da felicidade sendo vivida. Não é comum pensarmos: «Caramba! isto é a felicidade. Estou a ser feliz. Olha que bom.» Deixamo-nos ir. Apenas. Estamos demasiado ocupados a fruir, para nos dedicarmos simultaneamente a reflectir sobre o prazer e sobre o sentido desse presente. Escrevi que era talvez uma pena, mas, pensando bem, é possível que o não seja. Dividirmo-nos em dois para, no mesmo instante, sermos a pessoa feliz e o espectador da pessoa feliz, poderia introduzir uma hesitação na felicidade, um certo retraimento, alguma diminuição do estado de bem fluir. Em todo o caso, e está em Proust inteiro, o tempo, que nos desgasta e envelhece, é também o grande revelador. Olhamos o passado, revemos os momentos e, agora que os perdemos, somos capazes de os compreender luminosamente. Em 1968, na casa da Tia Amelinha e do Tio António, onde a família se reunia pelo Natal ou pelas festas de aniversário, e eu e os meus primos brincávamos até desmaiar de cansaço, fui feliz. Ao longo do correr dos decénios, em todos os reencontros com outro primo, meu querido António Maria, com quem aprontei aventuras que traziam os nossos pais em polvorosa, fui feliz. De todas as vezes, nos anos 70, 80, 90, ou ainda ontem, em que vivi amizades avassaladoras e paixões eternas, fui muito, muito, muito feliz. Ou quando descobri Proust, justamente. Ou quando me nasceu um filho e quando me nasceu uma filha. Histórias, situações, momentos, que recupero, voluntária ou involuntariamente, em