Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 38

A Cadeira de Lona Sandro William Junqueira Está um dia quente. Um daqueles dias de verão em que parece que uma vaca se deita em cima de nós. Um calor dos demónios por toda a parte. E mosquitos. E moscas. E respiração ofegante. E dores nas têmporas. E pele a colar à roupa. Até aqui, onde na maior parte do tempo é só vento e nevoeiro. Nevoeiro e vento. A maior parte do tempo. O presidente está no forte a gozar o seu período de férias. Prepara-se para a toma da sua dose diária de informação. A cadeira é de lona. De cor bege. Ou salmão. É uma cadeira de lona. Bege ou salmão. O Augusto Hilário, que também está no forte, não de férias, mas em trabalho, tem um jornal na mão. O jornal de notícias. Na mão. E estende a mão. E empresta ao presidente o jornal de notícias. Para que ele possa saciar o apetite. E lambuzar os dedos. Augusto Hilário, depois de ter emprestado o jornal de notícias, ajoelha-se junto da cadeira de lona. Não para rezar. Antes fosse. Ajoelha-se junto da cadeira de lona para verificar com o indicador a temperatura da água do alguidar de plástico. António Hilário encontra-se junto de um alguidar de plástico com água morna. E da cadeira de lona salmão ou bege. Prepara-se para tratar daquele maldito calo que há tantos meses importuna o presidente e o seu caminhar. Um calo, é verdade. Coisa mais terrível não há. Um prego teimoso que faz questão de penetrar a sola do pé sempre que o presidente calca o chão com mais 38 força. Neste dia quente de agosto chegam notícias da Checoslováquia. Está no jornal. O presidente, interessado, esganado, começa a ler a notícia em destaque na primeira página ao mesmo tempo que o seu corpo começa a a diminuir… a a a fletir… a a a descer… Não tenho certeza quanto à utilização destas palavras…. Dá inicio ao movimento que permite à gravidade fazer o trabalho de o auxiliar a sentar-se. Está nas gordas do jornal de notícias. A primavera de Praga aproxima-se do seu fim. E a atenção do presidente prende-se ali. Na junção daquelas letras enquanto as suas rótulas começam a dar de si. Ventos vermelhos sopram de leste e a primavera de Praga ameaça morrer em pleno verão. E foi então que aconteceu. Aconteceu. Foi. Aconteceu o inesperado. Não se sabe se por um golpe de calor. Se pelos mosquitos e moscas. Se pela atenção dada aos ventos vermelhos de leste. Se por aselhice ou distração. Se por descuido ou velhice. Se por desequilíbrio ou debilidade da cadeira de lona. Bege ou salmão. Na verdade, não se sabe. Talvez nunca se venha a saber. Nunca. Há sempre uma versão diferente para todas as coisas. E ainda bem. Que interesse têm as coisas que se passam a partir do momento em que se passam? Não se sabe se por descuido, desequilíbrio – ou por mera debilidade da cadeira de lona. O que é certo é que o corpo do presidente falha a cadeira, ou a cadeira de lona falha perante o peso do presidente, e a cabeça do presidente dá uma forte pancada contra as lajes do terraço do forte. No momento exato em que pelas lajes do terraço do forte passou o