Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 35

escrevesse sobre o que acontece, não haveria verdade. Porque a verdade é sempre algo que é dito. A mim, pareceu-me importante deixar dito quem foi Sophia. Das desventuras próprias à produção literária falta ainda falar do objeto último de todo o trabalho e esforço empreendido, geralmente tarefa para vários anos, a execução de um exemplar de escrita que virá a transformar-se no objeto a que chamamos livro. Começar por seguir os ensinamentos de Alexandre Dumas sobre o melhor método para escrever uma peça de teatro parece um bom princípio: «Não tem dificuldade. Compre um caderno, forre-o muito bem e na primeira linha escreva 1º Ato. Quando chegar ao fim do caderno, a peça está pronta» (Carvalho, 2014, p. 18). papelinhos, tantas vezes intraduzíveis no dia seguinte, mas que me parecem autênticas emergências. Embora algo ansiosa, essa fase é importante para conseguir despejar tudo pela ponta dos dedos. É nesta altura que oiço amiúde piropos do tipo: «Calma, o computador não tem culpa. Olha que partes as teclas!». Mas o livro começa a nascer. Depois vêm os lançamentos. Durante quase três anos fui só eu, Sophia e o livro que estava para nascer. Depois da publicação já não somos nós e o livro, mas nós, o livro e o resto do mundo. E isso pode ser uma relação distópica. Por um lado, queremos que o resto do mundo faça parte - afinal, é para isso que se escreve. Por outro, tantas atenções chegam a parecer invasões. De um dia para o outro passamos do maior recato e isolamento, que é sempre a escrita de um livro, para ficar sob os holofotes. Umas vezes alumiam, outras encandeiam. Embora nada aconteça sem este tiro de partida, tão singelo quanto desconcertante, cada autor tem os seus processos. Uns escrevem todos os dias, outros de supetão. Eu sou das que inveja os primeiros e se aproxima dos segundos. Tal significa passar por uma fase no processo de investigação em que me começo a sentir tão cheia, tão cheia, que parece que vou explodir. Não era objetivo deste texto deixar ensinamentos para futuros biógrafos, até porque, como nos diz García Márquez (2015, p. 46), «não há conceito que mais tarde ou mais cedo não seja ultrapassado pela vida». Mas «se o exercício da dúvida produz maus anúncios pode, em contrapartida, gerar melhores escritores» (Carvalho, 2014, p. 17). Aí é chegado o tempo em que vou acordar a meio da noite para escrever coisas, rabiscos, em Que a dúvida nos acompanhe. Aos biógrafos. E aos outros. 35