Tenente Miliciano António Cunha Caldeira,
meu pai,
(Batalhão 356, Sapadores, Guiné-Bissau, 1962-64)
no dia do seu casamento com Mariazinha,
minha mãe.
Na minha. Um espanto magoado a escorrer-me
pelas pernas abaixo, pétalas de rosa, pétalas de
rosa, e ala É tarde, demasiado tarde. Não é?
Que é a vida, a vida que tem tantos, mas tantos
gritos que não se dizem e morres por vezes tão de
mansinho ( E eu, pai, estou viva?)
Que nem dás por ela.
( Ele, o Outro, a dizer baixinho correndo a fechar a
porta, é segredo, sim, o nosso segredo, sim, e
desaperta as calças e rouba-me o sangue e eu,
melancia, melancia)
( Eu estou vivo?)
Olha, anda, vamos aos grilos, deitamo-nos na erva,
fechamos os olhos e eu tenho para aí seis anos e tu
e eu
Somos quase felizes. Juro.
Pouca coisa basta para alguém se morrer. Pouca
coisa basta para alguém se salvar. Andolitá.
(Ela: Escorreu-se-me uma vida inteira com o
sangue que me roubaste. Pouca coisa basta para
alguém se morrer, um absurdo, uma bala inimiga)
Eu sei, pai, meu pai, eu também queria ter corrido
para ti, que matulona estás, mas do que ficou por
dizer
Não há remédio, é a tal da humidade-oitenta-e-tal-
por-cento e aquele momento obsceno em que a
vida escancara a morte
Olhos aguados, quieto, muito quieto, e o fio que se
quebra
26 Jamais podemos retornar ao que poderia ter sido.
Marta Cunha Caldeira, entre Bissau, setembro de 1962 e
Nafarros, janeiro de 2020
Humidade-oitenta-e-tal-por-cento.
(a negrito as palavras do Rui Nunes)