Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 26

Tenente Miliciano António Cunha Caldeira, meu pai, (Batalhão 356, Sapadores, Guiné-Bissau, 1962-64) no dia do seu casamento com Mariazinha, minha mãe. Na minha. Um espanto magoado a escorrer-me pelas pernas abaixo, pétalas de rosa, pétalas de rosa, e ala É tarde, demasiado tarde. Não é? Que é a vida, a vida que tem tantos, mas tantos gritos que não se dizem e morres por vezes tão de mansinho ( E eu, pai, estou viva?) Que nem dás por ela. ( Ele, o Outro, a dizer baixinho correndo a fechar a porta, é segredo, sim, o nosso segredo, sim, e desaperta as calças e rouba-me o sangue e eu, melancia, melancia) ( Eu estou vivo?) Olha, anda, vamos aos grilos, deitamo-nos na erva, fechamos os olhos e eu tenho para aí seis anos e tu e eu Somos quase felizes. Juro. Pouca coisa basta para alguém se morrer. Pouca coisa basta para alguém se salvar. Andolitá. (Ela: Escorreu-se-me uma vida inteira com o sangue que me roubaste. Pouca coisa basta para alguém se morrer, um absurdo, uma bala inimiga) Eu sei, pai, meu pai, eu também queria ter corrido para ti, que matulona estás, mas do que ficou por dizer Não há remédio, é a tal da humidade-oitenta-e-tal- por-cento e aquele momento obsceno em que a vida escancara a morte Olhos aguados, quieto, muito quieto, e o fio que se quebra 26 Jamais podemos retornar ao que poderia ter sido. Marta Cunha Caldeira, entre Bissau, setembro de 1962 e Nafarros, janeiro de 2020 Humidade-oitenta-e-tal-por-cento. (a negrito as palavras do Rui Nunes)