Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 21

hora há sempre um disco a tocar no armário a que oiço chamar pick up. Quando terminar de ler, o meu pai deixará o jornal na mesa e eu começarei a contar-lhe histórias... E é aqui que entra Bach. Ouvimos um dos concertos para dois pianos e orquestra de cordas. O adagio tem qualquer coisa de encantatório, um discorrer de melodias que se entrelaçam e separam e voltam a unir-se... Por momentos, o meu pai pousa o jornal nos joelhos. Eu paro de brincar. O meu coração bate com força. Sinto que não cabe dentro de mim. Não sei explicar esta emoção. Levo a mão ao peito. Abro os olhos e estou na sala de concerto outra vez. Os dois homens estão ao piano, tocam de costas para nós e de frente para a pequena orquestra. Lá estão as mesmas melodias em movimento, o pizzicato nas cordas dedilhadas, os músicos juntos, os gestos suaves, quase síncronos... Emociono-me. Não há um nó na garganta, só lágrimas nos olhos. Por momentos volto à sala onde estava com o meu pai. E pergunto-lhe se esta é a música que se toca no céu. Ele sorri e passa-me a mão pela cabeça. Volta ao seu jornal. Eu abraço o meu cão de peluche. Tenho saudades deste lugar seguro onde pude crescer sem sobressaltos... Na sala há agora quatro pianos. Continuamos com Bach. Tocam três homens e uma mulher. Ela tem 81 anos e chama-se Olga. Está ligeiramente curvada sobre o piano. A minha memória faz-me vê-la há mais de vinte anos, numa outra obra para quatro pianos, percussão e canto. Tem o mesmo sorriso, os dedos movem-se com agilidade e quando não toca as mãos desenham o ritmo no ar. Esta música que se me apresenta com um rigor belo que diria matemático, leva-me a Jorge de Sena, como sempre acontece quando ouço Bach. Penso nas suas palavras que trago comigo desde o fim da adolescência: “Nada há que eu não conheça, que eu não saiba, /e nada, não, ainda há por que eu não espere /como de quem ser vida é ter destino.” Aqui está a lucidez que me espanta sempre, tal como na primeira vez e a luminosidade de um “terror tranquilo, seguro e certo” ... “A tudo quanto espero e quanto temo,/ entregue a ti, Amor eu me dedico.” ... “Não poderás salvar-me, nem salvar-te. / Apenas como queiras ficaremos vivos.” Escrever, pensando e sentindo, é como compreendo a música de Bach e as palavras de Sena. A minha tarde há-de passar-se neste caminho cruzado entre os pianos e a vida já vivida, de volta das memórias que surgem sem aviso, às vezes antigas, outras de ontem, associações quase livres que me levam e trazem num movimento contínuo. 21