hora há sempre um disco a tocar no armário a que
oiço chamar pick up. Quando terminar de ler, o
meu pai deixará o jornal na mesa e eu começarei a
contar-lhe histórias...
E é aqui que entra Bach. Ouvimos um dos
concertos para dois pianos e orquestra de cordas.
O adagio tem qualquer coisa de encantatório, um
discorrer de melodias que se entrelaçam e
separam e voltam a unir-se... Por momentos, o meu
pai pousa o jornal nos joelhos. Eu paro de brincar.
O meu coração bate com força. Sinto que não cabe
dentro de mim. Não sei explicar esta emoção. Levo
a mão ao peito.
Abro os olhos e estou na sala de concerto outra
vez. Os dois homens estão ao piano, tocam de
costas para nós e de frente para a pequena
orquestra. Lá estão as mesmas melodias em
movimento, o pizzicato nas cordas dedilhadas, os
músicos juntos, os gestos suaves, quase
síncronos... Emociono-me. Não há um nó na
garganta, só lágrimas nos olhos.
Por momentos volto à sala onde estava com o meu
pai. E pergunto-lhe se esta é a música que se toca
no céu. Ele sorri e passa-me a mão pela cabeça.
Volta ao seu jornal. Eu abraço o meu cão de
peluche. Tenho saudades deste lugar seguro onde
pude crescer sem sobressaltos...
Na sala há agora quatro pianos. Continuamos com
Bach. Tocam três homens e uma mulher. Ela tem 81
anos e chama-se Olga. Está ligeiramente curvada
sobre o piano. A minha memória faz-me vê-la há
mais de vinte anos, numa outra obra para quatro
pianos, percussão e canto. Tem o mesmo sorriso, os
dedos movem-se com agilidade e quando não toca
as mãos desenham o ritmo no ar.
Esta música que se me apresenta com um rigor
belo que diria matemático, leva-me a Jorge de
Sena, como sempre acontece quando ouço Bach.
Penso nas suas palavras que trago comigo desde o
fim da adolescência:
“Nada há que eu não conheça, que eu não saiba, /e
nada, não, ainda há por que eu não espere /como
de quem ser vida é ter destino.”
Aqui está a lucidez que me espanta sempre, tal
como na primeira vez e a luminosidade de um
“terror tranquilo, seguro e certo” ... “A tudo quanto
espero e quanto temo,/ entregue a ti, Amor eu me
dedico.” ... “Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
/ Apenas como queiras ficaremos vivos.”
Escrever, pensando e sentindo, é como
compreendo a música de Bach e as palavras de
Sena.
A minha tarde há-de passar-se neste caminho
cruzado entre os pianos e a vida já vivida, de volta
das memórias que surgem sem aviso, às vezes
antigas, outras de ontem, associações quase livres
que me levam e trazem num movimento contínuo.
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