Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 20

Memória e Nostalgia Joana Pontes I Houve um tempo em que eu fazia como a minha mãe, exactamente ao contrário do meu pai: quando calhava ver as fotografias dos álbuns da infância ou abrir a gaveta onde guardava cartas e postais, começava a chorar. Primeiro ficava com um nó na garganta, ou como dizia a minha Carolina quando era pequenina, as lágrimas atravessavam-se como um osso e não conseguia tão cedo voltar a falar. Depois começavam a cair e as mãos ficavam molhadas, as cartas e as fotografias também. Seguia-se um choro desamparado e uma pressa danada em arrumar tudo e voltar ao momento anterior a esta peregrinação. Há dois anos comecei a preparar um filme sobre fotografia colonial. Foi aí que reparei que agora faço como o meu pai, exactamente ao contrário da minha mãe: pego nos álbuns, viro as páginas de cartão grosso e as finíssimas folhas de papel de seda que as cobrem e vejo com curiosidade como éramos, o que fazíamos, onde estávamos. Levei as minhas fotografias para este filme como prova de que fomos felizes em muitas ocasiões, sem pensar nisso, vivendo, apenas vivendo. Nestas imagens encontrei os meus pais como namorados apaixonados, eu e o meu irmão juntos, como gostaria que estivessemos agora, as manhãs na praia, as escolas onde estudámos, as festas de 20 aniversário e até as máscaras de carnaval que usámos com a alegria contagiante do disfarce: eu, de chinesa, com um quimono que era, afinal, um robe de quarto e na cabeça um chapéu de cartão azul escuro de onde saía uma trança comprida em papel de seda preto. A meu lado, o meu irmão e um vizinho de quem eu queria ser namorada, bravos cowboys com pistolas presas num coldre de plástico castanho e um chapéu a condizer. E depois, lá estão as imagens do nosso crescimento. Eu, a mais alta do grupo, os cabelos compridos e um ar de desafio. O meu irmão, o mais alto do grupo, os cabelos compridos e um ar discreto. A seguir, um grande intervalo em que não há imagens ou muito poucas, talvez dez ou quinze anos. Nesse intervalo, caminhos diferentes levaram-nos a sítios longínquos, e a vida foi correndo. II Tenho à minha frente dois pianos e uma orquestra de cordas. Tocam Bach. Fecho os olhos. E logo estou numa pequena sala com o meu pai. Tenho cinco ou seis anos e brinco com um cão de peluche branco igual ao do Tintim. Os olhos são duas contas negras e a língua é um minúsculo pedaço de flanela vermelha, sempre de fora. As persianas estão corridas até meio da janela. A penumbra suaviza o calor. O meu pai lê o jornal, como faz todas as tardes quando chega do trabalho. Ouvimos música. A esta