Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 18

Fotograma de Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky O que podemos identificar como vínculos adormecidos com o passado, prontos a ser esquecidos, pode antes reconduzir-nos a ele como fonte de inspiração, tanto nas escolhas pessoais, quanto nas convicções coletivas e nos processos de transformação social. Existe mesmo, na perspetiva de um certo «marxismo romântico», a hipótese de incorporar, na lógica do combate à deriva neoliberal, uma perspetiva crítica e épica do que passou detetável em obras produzidas nos campos da criação literária, artística e intelectual no curso do século XIX, podendo a partir delas recuperar-se uma dimensão inspiradora da vontade de emendar os males do mundo. De Dickens a Thomas Mann, de Balzac a Tolstoi, de Victor Hugo a José Martí, de Bakunine a Rosa Luxemburgo ou a Marx, encontram-se sinais dessa chispa transformadora que emergem de um passado desbloqueado para reaparecer com novo vigor. Para que isto seja possível torna-se imperativo separar, de um lado, a história, sempre com uma dimensão autorreflexiva, que para se fazer coloca o passado à distância, e do outro a memória, que se preocupa menos com a contextualização do que com o uso do que aconteceu como alimento da vida pessoal e ferramenta da mutação. Porque esta é uma construção, filtrada por conhecimentos adquiridos e experiências habitadas, que viaja até ao passado, não para conhecê-lo, ou para 18 interpretá-lo, mas para torná-lo parte da vida atual. Daí a necessidade de dialogar de todas as formas com a memória, bem como com os seus múltiplos intérpretes e testemunhas, não deixando que seja apenas quem pode e quem manda – em casos extremos os algozes, e não as vítimas – a decidir em que lugar do passado estão os nossos interlocutores.