Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 17

Pichagem situacionista em Paris, Maio de 1968 «nostalgia reconstitutiva», aquela da qual vulgarmente falamos, preocupada sobretudo com a tentativa de recuperação ou de hipotética reconstituição do vivido, de forma a adequá-lo à imagem que dele é retida, de uma outra, a «nostalgia refletida», apostada em ultrapassar o limiar da história e da memória, imergindo de maneira criadora «nos sonhos de um outro lugar e de um outro tempo». Viajando até ele para poder alimentar o presente. A nostalgia toma aqui a forma de «emoção histórica», munida de ricas virtualidades dinâmicas no processo de interpretação do mundo ou na forma de nele interferir, agindo hoje com o ontem como referente ou inspiração. Boym reconheceu essa leitura positiva da nostalgia como «efeito colateral da teleologia do progresso»; isto é, como instrumento de uma visão historicista do mundo, reanimada, a partir das décadas de 1950-1960, com a afirmação da «cultura de massas», que disseminou por todo o lado, com o cinema e a televisão como instrumentos decisivos, imagens atualizadas ou idealizadas de épocas ou figuras do passado. Neste sentido, a relação entre memória e história pode tornar-se um fator de transformação, recuperando fragmentos do que chega de trás – episódios, figuras, valores ou ideias – como fatores de mobilização para um número crescente de sujeitos, já não como região de melancolia e inércia para quem viva a contemplar o passado ou a lamentar a sua perda. Uma transformação no conceito de melancolia pode interferir também neste processo de recuperação do esquecido. Enzo Traverso identificou-o em associação com o que chamou «melancolia de esquerda», espécie de tradição escondida, tão antiga quanto a própria ideia de esquerda, que possui um trajeto subterrâneo e persistente, capaz de interferir politicamente nos dias de hoje. Terá sido o colapso dos regimes do «socialismo realmente existente» que se seguiu a 1989 a trazê-la à superfície, já que antes ela teria sido recalcada, censurada ou transformada em fator de uma liturgia. Ela não comporta um sentimento passivo ou de derrota, encarado como doentio, mas antes uma disposição interior dinâmica que «não é um freio ou uma forma de resignação», mas «uma via de acesso à memória dos vencidos, capaz de renovar as esperanças do passado que permaneceram inacabadas e que apenas esperam para ser reativadas». A sedução que exerce coloca-a em condições de promover um regresso a um «objeto de amor perdido», a anseios e utopias com origem no que chega de antes, incluindo-se neste os combates de natureza emancipatória despoletados a partir da Revolução Francesa, da tradição do movimento operário oitocentista, da viragem visionada em Outubro de 1917 e da renovação plural das causas sociais que teve lugar nos anos sessenta, ostentando o Maio de 68 como insígnia. 17