Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 16

Em movimento, entre passado e futuro Rui Bebiano Este é um tempo sobrecarregado com sinais do que foi ficando para trás, onde ao mesmo tempo sentimos uma crescente dificuldade em conviver com a memória. O paradoxo é apenas aparente, não sendo difícil atribuir-lhe um sentido. De um lado, um melhor acesso ao conhecimento histórico e um crescimento dos usos do passado, incorporados em meios que vão da propaganda política à publicidade comercial e são constantemente ampliados; do outro, o volume e a velocidade da informação circulante, apoiados na revolução do digital, fazem com que tudo se transforme muito depressa em algo de distante, tornando-se fácil perder-lhe o rastro no arquivo labiríntico e de dimensões infinitas para onde vão as suas marcas. A memória, seja social ou física, seja individual ou de grupo, é desde logo, uma experiência de perda. Representa uma presença do passado que sempre revivemos por mediação de vestígios e de recordações, mas é também, como propõe Henry Rousso, «uma consciência da ausência, do tempo que passa, do tempo que se altera». Não recupera, de modo algum replica, aquilo que aconteceu em outra época, apenas estabelece uma conexão, como a máquina do tempo ficcionada por H. G. Wells, que vivia tanto de reminiscências quanto dos processos edificadores suscitados pela imaginação. Em alguns casos, aliás, ela pode 16 irromper a partir desse lugar do quase-nada, dessa rasura do ocorrido, que é o esquecimento. Foi neste sentido positivo que Marc Augé anotou ser «preciso esquecer para continuar presente, esquecer para não morrer, esquecer para permanecer fiel». Coloca-se então a pergunta: mas, afinal, ser-se fiel a quê? O esquecimento, seja ele acidental ou consciente, impõe uma disciplina capaz de separar aquilo que desaparece, ou se esconde, ou que então é silenciado, do que pode ser retido pela lembrança, sobrevivendo a esse abandono. Em regra, é a cultura dominante, imposta pelos vencedores ou pelos mais fortes nos territórios do combate político e social, a determinar o que fica, aquilo que permanece por mais ou por menos tempo, separando-se do que rapidamente se esquece e evapora. Nesta medida, a fidelidade mencionada por Augé assenta numa busca daquela parte da verdade passada, tão forte e presente como qualquer outra, que foi traída pelo esquecimento. A consciência do esquecimento pode assim levar-nos até ao elo perdido, ao que não surge como óbvio, à interpretação, ao facto ou ao intérprete omisso, para ir ao encontro do que estava ali, mas que não víamos ou que algo escondia. É este o papel que pode cumprir a nostalgia como instrumento de encontro. Svetlana Boym atribuiu ao conceito um significado denso e de uma natureza não necessariamente negativa, doentia e passadista, tal como ele é mais vulgarmente entendido. Distinguiu, de forma muito vantajosa, uma