Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 12

Não escreverás o que te aconteceu em Luanda e no regresso de Luanda, mas inventarás o que faça com que os outros saibam o que te aconteceu em Luanda e no regresso de Luanda. Não terás medo de te afastar da verdade porque a maneira mais rigorosa de contar a verdade é inventar a melhor mentira. Por falar em mentiras. A minha memória constrói- se de mentiras. O mito de um Império, que ia do Minho a Timor, e da Metrópole, essa casa-mãe longínqua onde havia cerejas. Portugal não era um país pequeno, os hinos que eu cantava aos sábados de manhã na escola não louvavam a Metrópole pobre onde eu tinha nascido. Nada existiu como me fizeram acreditar que existia. O Império existiu sem esplendor, a Metrópole sem grandeza e as colónias sem futuro. Mas é verdade que se deu o acaso de a minha história se ter cruzado com outra História. É verdade que o fim do Império coincidiu com o fim da minha infância. E que a partir desse momento nunca mais acabaram as perguntas. Que eu me fiz ou que os outros me fizeram, tanto faz, desde que a dúvida se instale. Retornada ou refugiada?, portuguesa ou angolana?, europeia ou africana?, vingativa ou reconciliadora?, testemunha ou cúmplice?, colonialista ou independentista?, vítima ou agressora?, quanto mais honestamente tento responder a estas perguntas menos sei como o fazer. Também porque 12 quase nada na vida é binário. Dulce ou Bebé? Como se pode contar o fim da infância, se esse fim não tem a grandeza dramática de um acontecimento como o fim do Império? O meu pai, ao contrário do Mário, o pai do Rui, não foi preso mas só veio para Portugal em Novembro de 1975, poucos dias antes da Independência de Angola. Em Luanda, o meu pai nunca me chamava Dulce. A não ser que estivesse zangado comigo. Sou a mais nova da família e para o meu pai eu era a Bebé. Era por esse nome que eu lhe respondia. Respondia por outros nomes a outras pessoas, Dulcinha, Merinho, Cambuta, Brasa, Cuca, Bandeirolas, mas nenhum era tão estruturante para mim como Bebé, a única maneira que eu existia para o meu pai. Nunca esperei tão ansiosamente por nada como esperei pelo regresso do meu pai para junto de mim, na Metrópole. Tinha saudades dele mas acima de tudo sentia-me desprotegida. O mundo tornara- se cruel e eu associava essa crueldade à ausência do meu pai. Vista da pobre aldeia transmontana, Fonte Longa, onde eu passei a morar com os avós maternos que acabara de conhecer e que sem fazerem caso da lógica a que qualquer história de reencontro se obriga, estavam ambos moribundos, a vida em Luanda era um paraíso cada vez mais feliz. Em Trás-os-Montes, eu estaria protegida dos tumultos de 1975, foi essa a justificação que a minha mãe deu para me deixar lá e partir para