Não escreverás o que te aconteceu em Luanda e no
regresso de Luanda, mas inventarás o que faça com
que os outros saibam o que te aconteceu em
Luanda e no regresso de Luanda. Não terás medo
de te afastar da verdade porque a maneira mais
rigorosa de contar a verdade é inventar a melhor
mentira.
Por falar em mentiras. A minha memória constrói-
se de mentiras. O mito de um Império, que ia do
Minho a Timor, e da Metrópole, essa casa-mãe
longínqua onde havia cerejas. Portugal não era um
país pequeno, os hinos que eu cantava aos sábados
de manhã na escola não louvavam a Metrópole
pobre onde eu tinha nascido. Nada existiu como me
fizeram acreditar que existia. O Império existiu sem
esplendor, a Metrópole sem grandeza e as colónias
sem futuro. Mas é verdade que se deu o acaso de a
minha história se ter cruzado com outra História. É
verdade que o fim do Império coincidiu com o fim
da minha infância. E que a partir desse momento
nunca mais acabaram as perguntas. Que eu me fiz
ou que os outros me fizeram, tanto faz, desde que a
dúvida se instale.
Retornada ou refugiada?, portuguesa ou angolana?,
europeia ou africana?, vingativa ou reconciliadora?,
testemunha ou cúmplice?, colonialista ou
independentista?, vítima ou agressora?, quanto
mais honestamente tento responder a estas
perguntas menos sei como o fazer. Também porque
12 quase nada na vida é binário.
Dulce ou Bebé? Como se pode contar o fim da
infância, se esse fim não tem a grandeza dramática
de um acontecimento como o fim do Império?
O meu pai, ao contrário do Mário, o pai do Rui, não
foi preso mas só veio para Portugal em Novembro
de 1975, poucos dias antes da Independência de
Angola. Em Luanda, o meu pai nunca me chamava
Dulce. A não ser que estivesse zangado comigo. Sou
a mais nova da família e para o meu pai eu era a
Bebé. Era por esse nome que eu lhe respondia.
Respondia por outros nomes a outras pessoas,
Dulcinha, Merinho, Cambuta, Brasa, Cuca,
Bandeirolas, mas nenhum era tão estruturante para
mim como Bebé, a única maneira que eu existia
para o meu pai.
Nunca esperei tão ansiosamente por nada como
esperei pelo regresso do meu pai para junto de
mim, na Metrópole. Tinha saudades dele mas acima
de tudo sentia-me desprotegida. O mundo tornara-
se cruel e eu associava essa crueldade à ausência
do meu pai. Vista da pobre aldeia transmontana,
Fonte Longa, onde eu passei a morar com os avós
maternos que acabara de conhecer e que sem
fazerem caso da lógica a que qualquer história de
reencontro se obriga, estavam ambos moribundos,
a vida em Luanda era um paraíso cada vez mais
feliz. Em Trás-os-Montes, eu estaria protegida dos
tumultos de 1975, foi essa a justificação que a
minha mãe deu para me deixar lá e partir para